Chikki 101 — Sobre Palavras

CHIKKI 101 — SOBRE PALAVRAS

UMA PERSPETIVA AUTOETNOGRÁFICA SOBRE A PALAVRA COMO INSTRUMENTO DE OCUPAÇÃO (SIMBÓLICA) DA ESFERA DIALÓGICA.

[Autoetnografia] [Conhecimento Situado] [Prática como Investigação] [Inscrição Pública] [Análise Social] [Aprendizagem e Vínculo]

I — SOBRE PALAVRA E PODER

Desde que comecei a publicar o que escrevo, a relação com as pessoas à minha volta mudou, ainda não percebi se a mudança foi positiva, mas acho que não.
Independentemente disso: A palavra tornou-se a minha nova ferramenta de criar realidade.

Em registos do meu diário, notei que, desde Fevereiro de 2025, tenho várias passagens de confrontos e resistência social, o que antes simplesmente não acontecia. Penso estar diretamente relacionado com o facto de ter vindo a ocupar de forma dialógica a esfera pública, pois coincide com a data de criação e partilha do meu projeto Chikki 101.

II — A OCUPAÇÃO DA ESFERA DIALÓGICA COMO AMEAÇA SIMBÓLICA

Ao publicar artigos e ensaios neste site, estou a afirmar: eu também posso nomear realidade. Mas nomear realidade é um ato de poder — e o poder simbólico, é sempre disputado. (Bourdieu,1989). Quando comecei a falar sem "pedir autorização", o simples ato de falar tornou-se insuportável. O insuportável não era o conteúdo das minhas palavras — mas o lugar delas— o facto de palavras verdadeiras e dilacerantes habitarem a minha voz.

A minha voz não vem da função, mas da consciência; e isso é insuportável para quem ainda confunde autoridade com hierarquia.

Agir e falar são formas de aparecer no mundo (Arendt, 2001).–mas quem aparece fora do papel que lhe foi socialmente atribuído é interpretado como ameaça.— É muito difícil para mim corresponder ao papel que me foi socialmente atribuído. As pessoas não me veem como sou, mas como imaginam alguém que fala com tanto domínio da palavra, escreve com rigor académico e, ao mesmo tempo, faz Puffis e canta sobre unicórnios com voz de esquilo fofo, seja. Desde que comecei a partilhar o que escrevo já ouvi de tudo: "fria", "instável", "agressiva", "drogada" "falta de empatia", "transtorno alimentar", "líder espiritual contemporânea", "autista", "bêbada" e o clássico "maluca". A minha palavra, denuncia mecanismos de poder simbólico —o que gera este tipo de reações. 

A tentativa de insulto, ridicularização ou deslegitimação é o mecanismo de regulação emocional utilizado pelo outro quando se sente ameaçado pelas palavras que profiro (e que não correspondem ao papel que me foi atribuído).

III — O DEMÓNIO PROJETIVO

É mais fácil dizer: “ela é arrogante” ou "ela está a passar uma fase difícil" do que admitir “ela faz-me pensar em coisas que me deixam desconfortável”.
Com o tempo, percebi que a hostilidade não era pessoal — era fisiológica e simbólica. Tornei-me o espelho projetivo do outro ao expor a palavra. Quando ouvimos algo que nos causa dissonância canalizamos o nosso desconforto para o outro através de um julgamento moral ad hominem. (Vamos analisar estes mecanismos no ponto V.)

Estas reações confirmam exatamente aquilo que procuro mostrar: o que escrevo provoca reações no outro porque é uma palavra justa, pensada e coerente com o que sei e vivi.

IV — DESCONSTRUIR A PERCEÇÃO DE ARROGÂNCIA NA OCUPAÇÃO DA ESFERA DIALÓGICA

O meu discurso não é combativo, nem confessional. Baseia-se num método de estudo autoetnográfico que tem como objetivo o arquivo e partilha de conhecimento situado.

Quem expõe as palavras é inevitavelmente julgado por elas. Ainda assim, não considero que o julgamento que me fazem corresponda de forma justa às palavras que partilho.
O simples ato de ocupar a esfera dialógica — falar com estrutura e autonomia — é frequentemente interpretado como arrogância. Esta falsa perceção vem da forma como o discurso se inscreve na mesma:

  1. O preconceito da assertividade — (ver o artigo Chikki 101 – Sobre Assertividade) mostra-nos que uma pessoa socializada com expetativas de docilidade, ao falar com convicção e método discursivo, sem recorrer a estratégias de suavização, é lida como confrontacional e agressiva.

  2. Do ponto de vista neurobiológico, esta reação acontece porque a perceção da palavra justa, proferida com autoridade interna de forma inesperada e assertiva, ativa, no outro, circuitos de ameaça. A amígdala e o córtex cingulado anterior, responsáveis pela avaliação emocional e pelo controlo do status, respondem à linguagem que expõe hierarquias com a mesma resposta fisiológica associada ao perigo.
    A palavra assertiva ativa, assim, um mecanismo de defesa — e o julgamento moral surge como racionalização dessa reação corporal: — "Quem és tu para falar sobre isso?"
    “Arrogante” torna-se o nome social atribuído ao desconforto que o corpo não soube interpretar como palavra legítima.
    Em termos simbólicos, o que está em causa é a redistribuição do poder de nomear realidade.

  3. Na psicologia, esta reação está frequentemente associada a um processo de identificação egocêntrica que ativa mecanismos de defesa.
    De acordo com Rosenberg (2003), a forma como uma mensagem é recebida depende da relação do ouvinte com o seu próprio ego. Quando o ouvinte se identifica de forma excessiva com o ego, a comunicação autêntica pode ser percecionada como uma ameaça, o que ativa mecanismos de defesa. Nestas situações, o discurso do outro passa a ser interpretado como ataque.

V— OS MEUS HATERS

Como vimos no capítulo anterior, quando falo com precisão e autoridade interna, algumas pessoas interpretam-no como competição. A palavra justa mostra as fragilidades do discurso do outro — e isso fere o ego. 

Por isso, os "haters" reagem com sarcasmo, ironia, complacência...Tentam afastar-me da esfera diálogica através de mecanismos de manipulação social subtis, de forma a recuperar poder simbólico.

Muitas pessoas foram socializadas para crer que só certos perfis têm legitimidade para falar e ocupar espaço discursivo, (que só homens velhos e acadêmicos o podem fazer, por exemplo). Os meus haters acreditam nisto.  Quando eu, socializada sob normas de feminilidade e docilidade, falo com segurança e estrutura e voz de esquilo, o campo simbólico reage como se fosse uma ameaça simbólica. Esta reação não é pessoal, mas estrutural e cíclica.

Faz parte de um padrão social: cada vez que uma camada vulnerável se afirma no espaço do logos, o sistema tenta reequilibrar-se pela resistência ao tentar desqualificar o discurso. No entanto, os padrões históricos consolam-me porque confirmam: o movimento que gera é inevitável — as estruturas mudam precisamente porque alguém insiste em falar e ocupar o espaço.

VI — VIOLÊNCIA SIMBÓLICA

Poder simbólico é o poder de instituir o real através da linguagem — mas nem todo o poder simbólico é violência simbólica.

A violência vem quando o poder de nomear se exerce de forma invisível e imposta, naturalizando hierarquias e desigualdades.

Ao falar, recuso a imposição invisível que define quem pode ou não falar.

O meu gesto é de restituição, não de domínio — o que faço é uma forma de inscrição contra a anulação e o silêncio que me é— de forma invisível — estruturalmente imposto. 

 

Nota:
Existe a possibilidade de poder simbólico sem violência — o desenho, por exemplo, é poder simbólico — uma inscrição — que pode não ser violenta. (Ler o ensaio: Chikki 101 – Sobre Poder e Magia.)

VII — CONCLUSÃO: “OKUPAR” A PALAVRA

Partilhar o que escrevo é começar uma okupa no espaço discursivo.
As okupas urbanas transformam edifícios abandonados em lugares de vida, a okupa da palavra converte o discurso institucional — vazio — num lugar de consciência.

A palavra, quando sem mediação institucional, torna-se um ato de reapropriação epistémica.
Falar fora das estruturas que regulam o dizer é uma forma de desconstruir a dependência entre autoridade e hierarquia.
Ocupar um lugar de fala na esfera pública é uma forma de emancipação discursiva: afirmar que o pensamento pode existir sem tutela.
A palavra para mim é mais um instrumento de verdade do que de poder.

Xoxo,

Chikki.

NOTA METODOLÓGICA

Este artigo ensaístico de natureza autoetnográfica utiliza dados provenientes de registos pessoais, diários, notas e métricas digitais. A escrita é situada, articulando experiência e análise crítica. (Consultar: Novo Mapa)

ANEXO — ESCLARECIMENTO DE TERMOS E CONCEITOS

Autoridade — Legitimidade que nasce da coerência e não da posição hierárquica. Reconhecimento espontâneo do valor interno de quem fala com base no que é, diz e faz. (Arendt, 1968; Freire, 1996)

Consciência — Presença que integra o pensamento que sente, compreende e age em consonância com o real. (Chikki, 2025, em Chikki 101 — Sobre Ser)

Hierarquia — Estrutura de poder vertical baseada na obediência. Mantém desigualdades simbólicas e regula o acesso à palavra. (Foucault, 1975)

Okupar a palavra — Ato de falar e escrever fora das estruturas que legitimam o discurso. Reapropriação do espaço discursivo e afirmação da autonomia de pensamento. (Chikki, 2025)

Palavra justa — Palavra pensada, consciente e coerente com o Uno. Tem poder simbólico sem recorrer à violência simbólica. Conceito original com o contributo de Freire (1970) e Bourdieu (1982). (Chikki, 2025)

Poder — Influência sobre os outros e o mundo; capacidade de agir e produzir efeitos na realidade. (Arendt, 1958)

Poder simbólico — Capacidade de nomear e instituir o real através da linguagem. Pode ser emancipador ou opressivo conforme o uso. (Bourdieu, 1989)

Uno — Unidade entre pensamento, palavra e ação. Coerência ontológica do sujeito consigo mesmo. (Chikki, 2025)

Violência simbólica — Imposição invisível que naturaliza hierarquias e silencia vozes dissidentes. (Bourdieu, 1998)

Verdade — Coerência entre pensamento, palavra e ação, quando estes três movimentos são movidos por afeto, orienta a intenção humana. (Chikki, 2025, em Chikki 101 — Sobre Ser)

REFERÊNCIAS

Arendt, H. (2001). A condição humana. Relógio D’Água.


Arendt, H. (2004). Desobediência civil (M. J. Gomes, Trad.). Lisboa: Relógio d’Água.


Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Difel.


Ellis, C., Adams, T. E., & Bochner, A. P. (2011). Autoethnography: An Overview. Forum Qualitative Sozialforschung / Forum: Qualitative Social Research, 12(1), Art. 10. https://doi.org/10.17169/fqs-12.1.1589


Foucault, M. (1975). Surveiller et punir: Naissance de la prison. Gallimard.


Freire, P. (1970). Pedagogia do oprimido. Paz e Terra.


Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra.

Rosenberg, M. B. (2003). Comunicação não-violenta: Técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais (Trad. M. A. Veríssimo). São Paulo: Ágora.

Sapolsky, R. M. (2018). Comportamento: A biologia humana no nosso melhor e no nosso pior. Lisboa: Temas & Debates.

REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES:

Chikki. C.(2025). Sobre Ser. Chikki 101. Reapropriado de: https://chikkichikki.net/chikki-101/chikki-101-sobre-sernbsp


Chikki. C.(2025). Sobre Assertividade. Chikki 101. Reapropriado de: https://chikkichikki.net (disponível a partir de 21 de novembro de 2025)


Chikki. C.(2025). Sobre Poder e Magia. Chikki 101. Reapropriado de: https://chikkichikki.net/chikki-101/chikki-101-sobre-poder-e-magia

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