Chikki 101- Sobre Ser

CHIKKI 101 -SOBRE SER

Uma Reflexão entre Verdade e Superficialidade: Ser Uno, Ser Uni(córnio)

Durante muito tempo, a manifestação da minha estrutura interna foi vista como algo infantil ou menor. Percebia isso pela atitude condescendente em relação a mim. Sim, isto gerou frustração ao longo da vida — não por querer ser validada, mas por sentir que a linha de leitura do outro em relação a mim estava muito abaixo da complexidade que, na verdade, sustenta a minha acção. Condicionei a minha acção ao tentar “encaixar-me” na expectativa do outro. Demorei a perceber que não posso ser menos só porque os outros têm uma expectativa limitante em relação a mim, por não me compreenderem na totalidade. Só posso agir como um todo. Tentar simplificar-me para ser compreendida seria repetir o gesto que tantos fizeram comigo: o da condescendência. Quando sou menos clara, menos densa, menos eu, estou a infantilizar a minha própria humanidade. O que escrevo não nasce de necessidade de validação, mas da possibilidade de que o testemunho do meu pensamento possa ser útil a alguém.

I – SOBRE SER UNO: Contra a categorização social -A minha presença enquanto SER é Una (aqui refiro-me à definição de Parmênides do uno, adaptada às minhas próprias resoluções ontológicas). Tento ser coerente comigo mesma. O meu ser não se fragmenta entre plataformas sociais consoante o contexto. Não me adapto ao contexto. Eu crio o meu contexto. Recuso-me a ser resumida a um conjunto de signos confortáveis. Existo movida por uma intenção que não me permite fragmentar-me nas categorias que me tentam impor apenas para ser socialmente validada.
 Essa intenção é a minha promessa de criar algo novo — apoiada por Arendt, cada nascimento é também uma possibilidade de agir, de aparecer, de interromper o que parecia inevitável. Mesmo quando habito só uma das parcelas, não abdico da minha unidade. Não me divido para ser compreendida, não me dissolvo num líquido de expectativas sociais. Não uso cores mais pálidas com medo de ser vibrante ou intensa — uso as cores que gosto e as que me ficam bem. Não há uma versão reduzida de mim que mereça validação — ser inteira não acontece através da soma de partes, mas sim na minha presença (indivisível). Ser una é aceitar todas as partes que me constituem. De todas as categorias sociais em que sou inserida com a espetativa de fragmentação- nenhuma me acrescenta valor. É por isso que sustento uma prática que não se separa: a unidade — enquanto acção contínua, que se reafirma na exposição, na escolha estética e no pensamento articulado. Ser una e ser observada não é apenas uma afirmação — é um acto permanente de resistência simbólica.

II – SOBRE SER DESCONCERTANTE- As pessoas esperam que a vida do meu pensamento e da minha consciência seja superficial só porque sou gira e divertida. Já me acusaram deste espaço Chikki 101 ser “desconcertante” em relação ao meu trabalho. O que muitos acham desconcertante, pelo que percebi, não é o discurso em si, mas o facto de eu ser fun, da minha linguagem ser saucy, de ter uma imagem it girl e pop, e ao mesmo tempo sustentar uma estrutura de pensamento complexa. Quando dizem que é “desconcertante” não estão apenas a reagir ao conteúdo, mas a projectar uma dificuldade em integrar duas dimensões que me recuso separar: um pensamento articulado e procura da verdade em consonância com uma estética divertida, exagerada, fixe e fun. A dificuldade de me aceitarem enquanto Ser Uno tem a ver com preguiça porque eu não estou a facilitar a categorização social nem o pré-conceito, não encaixo na expectativa. Ainda que superficialidade e suavidade não sejam a mesma coisa, sinto que devia ser superficial para não ser “demasiado”. Superficialidade aborrece-me, não consigo ser superficial na minha prática, muito menos em relações interpessoais. Reconheço que tenho suavidade: uma forma de estar que se recusa a ser oprimida pelo peso das coisas, um modo de agir contra a brutalidade do mundo- que se sustenta na prática e na consistência e consciência da minha ação.

III – SOBRE VERDADE -Chikki 101 não existe como explicação. Mas como exercício de pensamento. Não tenho uma dissertação a defender aqui. Tenho vontade de pensar até encontrar o mais próximo da verdade. A verdade não é uma resposta — é um lugar a partir do qual se fala. A verdade que me importa não é aquilo que foi acordado até ao momento pelos vários modelos de análise e interpretação do mundo como “verdade”. Verdade aqui é aquilo que eu própria consigo sustentar com as minhas acções. O meu lugar de fala. Procuro agir com intenção, ser coerente comigo. Por isso, muitas vezes sou acusada de ser "demasiado dura" comigo mesma. Não sou exigente comigo — sou verdadeira. Essa verdade não precisa sequer de ser explicada — é inteligida pelo outro, através da minha acção no mundo. Como Arendt, acredito que a verdade não é absoluta nem transparente: é aquilo que resiste. Verdade é não fingir nada. A verdade vive na coerência entre  pensamento, acção e ser.

IV – SOBRE ERRO- Nada do que escrevo deve ser tomado como sinal de ausência de erro. Procurar agir em conformidade com as leis da minha consciência não significa que consiga fazê-lo sempre. Erro com frequência, e estou ciente disso. O compromisso com a integridade não exclui a falha — exige, aliás, que ela seja reconhecida. Os Puffis têm bainhas mal cozidas, linhas soltas, costuras visíveis. Não se trata de um descuido estético, mas de uma opção estética consciente. Uma metáfora da minha própria condição humana. Uma escolha que assume a imperfeição como parte da estrutura. O mesmo se aplica à minha conduta. A exigência que mantenho comigo mesma vem de uma procura de verdade e responsabilidade. O que escrevo parte de um processo contínuo, autónomo, de tentativa, erro e reflexão. O erro não anula a intenção — revela os seus limites e, muitas vezes, obriga-me a reformulá-la.

V– SOBRE SUAVIDADE COMO ESCOLHA- Suavidade não é concessão. É a recusa do SER de se tornar cruel por ter sido ferido. Escolher a suavidade, o humor, ser fun, irónica, pós-ironica — é isso mesmo: uma escolha. Sinto o peso da vida — mas escolho não ser oprimida por ele. O peso não me define, nem me condiciona. Suavidade é um campo de acção consciente e contínuo — uma forma de SER no mundo. Não é uma ditadura do “bem-estar” ou da “felicidade”; é aceitar o meu poder de acção em relação a mim mesma — regular o peso da própria existência.

VI- SOBRE PRESENÇA 

A ausência afetiva só é tolerável numa lógica de sobrevivência. Em Arendt, é no domínio do labor e do trabalho que se age sem presença: sobrevive-se, cumpre-se função. Quando digo presença, refiro-me à capacidade de existir como ser no mundo — não como função, nem como persona ou personagem, mas como consciência. O ser, na sua singularidade, só aparece no campo da ação — e a ação exige afeto. O pensamento, no estágio volitivo, não existe sem afeto, é o afeto que potencia  a procura pela verdade. A ausência afetiva é, por isso, uma lacuna moral: falha por ausência de presença. Sem afeto, não conseguimos agir em consonância com a verdade. E sem a procura da verdade, não há presença no mundo. Existir com presença — é, para mim, o último estágio de desenvolvimento moral.

VII– SOBRE PROFUNDIDADE
 A falsa sensação de superficialidade quando entrego a minha profundidade é um fenómeno recorrente. Há quem confunda a minha conduta acessível, directa ou até doce com falta de densidade — o meu irmão mais velho diz que sou singela. Nunca acreditei que a profundidade só pudesse existir num contexto de seriedade ou anexada a uma tristeza existencial. 

Aquilo que entrego é profundo precisamente porque foi vivido. Foi a minha existência e vivência que me levaram a inteligir sobre isso.

A suavidade não é ausência de elaboração — é o resultado de um trabalho interno que me permitiu sintetizar as questões até chegar ao essencial. É preciso esclarecer: suavidade não é superficialidade. Superficialidade é desinteresse, um pseudo conhecimento desapaixonado. A superficialidade ignora o fundo; a suavidade conhece o fundo, esteve lá, mas escolheu não ficar- é a capacidade de ir ao fundo e voltar a sí mesmo. A verdadeira profundidade não é uma acumulação de peso — é o sossego de quem já aceitou carregar o peso. A manifestação mais genuína de profundidade é entregá-la ao mundo disfarçada de superficialidade: falar das coisas mais complexas da forma mais simples- isto é suavidade. Como Sísifo — aceito carregar a pedra. Com o tempo e a maturação, ela torna-se num balão.

A profundidade acontece sem que eu a procure. Acontece porque procuro verdade, e porque sou movida por um desejo contínuo de me compreender melhor. É isso que sustenta a minha acção. Procuro manter coerência entre o que vivo, o que penso e o que trago ao mundo. Mesmo que isso cause desconforto. Mesmo que pareça “demais”. Trata-se de uma prática de vulnerabilidade que não nasce da ingenuidade, mas de um conhecimento interno consolidado com o tempo — pela experiência, pela observação e pelo confronto comigo mesma e com o real.

VIII – SOBRE DESENHO- Interessa-me o desenho, não como disciplina artística, mas como estrutura de pensamento — como forma de produzir conhecimento. O desenho é matriz, uma linguagem que materializa o tempo e o pensamento e, por consequência, manifesta a minha estrutura intrapessoal. Ainda assim, não nego as qualidades do desenho enquanto disciplina: ele continua a conter tudo aquilo que o constitui como “um desenho” — textura, movimento, cor, forma…

O que afirmo aqui é: para mim, não existe uma “prática artística”. Existe uma prática — contínua — que começou desde que me lembro de mim. Desenho desde que existo. E aquilo que faço, não o faço por validação. Faço-o porque existo.

Um desenho, enquanto objecto, para mim é irrelevante. Os Puffis, enquanto objectos, são irrelevantes. O meu trabalho é uma atitude, uma forma de estar no mundo. As peças são vestígios da minha acção, conduta e intenção humana. Por isso, o que faço não se esgota. Não faço objectos que se desgastam com o tempo — estou a agir em consonância com uma intenção que resulta numa prática que cresce comigo.

Quero esclarecer: o meu trabalho não é performativo. Não depende da presença do outro para existir, nem é construído em função da recepção. O que faço existiria mesmo sem espaço de exposição. Mas escolho expor porque acredito que há pensamento que só se activa na partilha. Ao expor, crio a possibilidade de gerar pensamento em mim e no outro, faço-o como consequência da manifestação da minha coerência interior.

IX – SOBRE SER 

Deixei de ser só a Ana Pessoa e comecei a ser a Chikki Chikki porque compreendi que a Chikki podia chegar onde a Ana não conseguia. Não por desejo de criar uma "personagem", mas por necessidade de ultrapassar aquilo que eu já era. A Chikki -eu, uma pessoa real- sou muitas vezes confundida com uma construção. Mas não estou a representar nada: estou a ser. A Chikki não nasceu como estratégia, mas como consequência: da recusa de me adaptar, da escolha de não me traduzir, de não me trair a mim mesma. Não me protege — expõe-me. Mas desta forma tenho a possibilidade de existir. A Chikki é um mecanismo que criei para me ajudar a recusar a amputação social do "eu". Ser Chikki é a forma mais radical que encontrei de “liberdade" (ou seja — coerência comigo), de ter coragem para agir fora dos constrangimentos que a categorização social e o pré- conceito impõem. Ser quem somos não devia ser um acto de coragem — mas é. Não criei uma "personagem" para habitar o mundo: criei espaço no mundo para ser quem sou, agindo em consonância com a minha verdade — e vou continuar a fazê-lo enquanto existir. Não sou excepção por me afastar da norma — sou excepção porque não abdico de mim. E isso, percebi recentemente, é raro.
 Se sou cínica, é porque concordo com a doutrina de Diógenes: recuso um disfarce social. A minha verdade podia ser considerada cruel, se não fosse amaldiçoada com empatia. Recuso fingir ser quem não sou para parecer verdadeira. A maioria adapta-se ao mundo, de forma a conseguir sobreviver a ele. Felizmente, tenho a possibilidade de recusar o estado de sobrevivência: estou a agir em consonância com a intenção. Sou vulnerável, escolho não ter camadas protectoras. E por isso, não sou comparável, nem previsível. Isto — percebo — pode ser assustador para quem está num estágio inicial de desenvolvimento moral, porque a minha lei é a lei da consciência — da minha própria consciência. 

Não sou uma ideia, nem sou idealista — e, mais importante ainda, não sou um ideal. Não estou desligada da realidade. A experiência sensível, a relação com o mundo, é a origem. Sou um ser humano consciente da sua intenção e do seu poder de acção no mundo. Ser, para mim, é isso: não fingir que não vejo, não fingir que não sinto, não fingir que não sou. Escolho ser eu mesma, mesmo que ninguém me compreenda.

I'm a fucking unicorn — porque sou real.

REFERÊNCIAS Hannah Arendt, Susan Sontag, Etty Hillesum ,Parmênides, Deleuze

  

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