Chikki 101 – Sobre Poder e Magia nas sociedades contemporâneas
Sobre Poder e Magia nas sociedades contemporâneas:
Uma reflexão sobre inscrição símbolica como prática ontológica
Não se fala sobre desenho sem falar sobre magia. A primeira inscrição, foi também, o primeiro gesto de ação sobre o real. Honestamente sinto-me sempre reticente em usar Bataille como referência- explico o porquê desta relutância no Apêndice II. Continuando...Bataille em Lascaux ou a origem da arte (1955), retoma a hipótese oitocentista segundo a qual desenhar o bisonte equivaleria a possuí-lo, associando o gesto a uma prática "mágica" de caça. Contudo, reconhece depois que tal explicação é insuficiente: em Lascaux manifesta-se algo que excede a utilidade. A inscrição não procurava apropriar-se do mundo — foram as leituras posteriores que projetaram essa lógica (no Apêndice I esclareço também este assunto).
A magia não pode ser simplificada ao ponto de ser entendida como ritual de apropriação e domínio sobre o mundo. O primeiro gesto de desenho deve ser entendido como prática operatória de inscrição simbólica: não como tentativa de domínio e apropriação- isso seria ofensivo. Aqui, entendo desenho como prática (ontologica) em relação com a realidade, que inscreve presença e abre passagem entre mundos: visível e invisível.
a) Nota sobre Magia
Magia, aqui entendida como prática operativa que inscreve realidade, distingue-se de uma crença vaga através da sua natureza de ação: não se limita a interpretar o mundo, mas procura transformá-lo. Ritos, símbolos e gestos de inscrição não são representações; funcionam como instrumentos de inscrição que produzem efeitos na experiência individual e coletiva. Desde as lâminas órficas da Grécia antiga até às runas nórdicas ou às rezas populares medievais, encontramos formas de magia que atuam como tecnologias simbólicas. O seu objetivo é sempre o mesmo: agir sobre o real através do simbólico.
Antropologicamente, Marcel Mauss fala sobre magia como um sistema coerente de técnicas com finalidade prática (Sociologie et Anthropologie, 1902). Henry Corbin, que estudou o islão persa, acrescenta que a magia vive naquele que cria, como orgão de conhecimento que permite existir entre visível e invisível.
Na modernidade ocidental, autores como Giordano Bruno e Eliphas Lévi consideraram-na “ciência das ciências”: Bruno (queimado na fogueira em 1600) via a imaginação como força capaz de manipular a relação com o mundo; Lévi (marginalizado e perseguido em contexto academico e religioso– felizmente não foi queimado na fogueira) sustenta magia como síntese entre filosofia, religião e ciência.
A questão central que exponho aqui é que a magia se define pela sua operatividade: é um modo de inscrever efeitos no mundo. Esta inscrição pode manifestar-se na transformação da consciência ou na relação com o mundo . Suspendendo uma visão depreciativa e cética que a associa a prática símbolica ao engano: o ser humano sempre procurou meios de intervir sobre a realidade para a transformar em mundo, para existir com dignidade no mesmo. Na sociedade contemporânea a magia é ridicularizada, retirando ao ser humano a sua agência símbolica.
b) Nota sobre Poder
Se magia é inscrição, poder é a capacidade de influenciar os outros e o mundo, de produzir efeitos reais no comportamento, nas crenças e nas estruturas sociais. Michel Foucault insistiu que o poder é produtivo: cria sujeitos, saberes e práticas. Neste sentido, vamos "acreditar" que poder não é necessariamente negativo mas uma capacidade positiva de organizar a realidade. Falamos de um poder primeiro: o pessoal e um segundo: o relacional. Quanto ao poder institucional- como podem observar pelo que escrevo- tenho as minhas dúvidas se pode existir sem escalar para violência.
A relação entre poder institucional e o oculto torna-se evidente quando se observa que o acesso ao saber sempre foi controlado. Quem detém o segredo detém poder, porque pode organizar a experiência dos outros. O arquivo, como lembra Derrida, é uma tecnologia de poder: decide o que permanece e o que desaparece.
Historicamente, esta ligação explica o porquê de as instituições hegemónicas procurarem controlar a magia. A Igreja manteve rituais próprios, como o exorcismo, que funcionavam como práticas mágicas institucionalizadas. O Estado moderno centralizou a produção de saber e reprimiu práticas que conferiam autonomia comunitária. A ciência positivista classificou como superstição tudo o que não era compatível com o seu método. Em todos estes casos, assistimos a uma disputa pelo monopólio do poder de definir o real.
Assim, podemos afirmar: se magia é a prática operativa de inscrição da realidade, poder é a dimensão relacional dessa inscrição, a sua capacidade de se expandir e de criar realidade. Os dois conceitos são inseparáveis. O poder que hoje associamos a armas ou leis é no fundo a instrumentalização de símbolos, gestos e narrativas que conseguem influenciar realidades.
Concluindo, o oculto pode ser compreendido como um regime seletivo de saber: privado, restrito, transmitido sob condições específicas.
Posto isto, ao articular magia e poder assistimos a uma redefinição de oculto, enquanto uma forma exclusiva de "estar-no-mundo" que não tem necessariamente a ver com crença, mas com um campo de disputa política, onde se decide quem pode definir o real, quem tem acesso ao conhecimento e quem fica fora dele.
I. Sobre o Poder Simbólico
1) Distinções conceptuais mínimas:
1.1. Pensamento religioso.
Estrutura-se através da relação com o sagrado/transcendente, regulada por doutrina (ortodoxia) e por práticas (ortopraxia) mediadas por instituições. Os seus enunciados são normativos (verdade de fé), orientados por finalidades soteriológicas e por regimes de "autoridade". O rito é um modo de manter a aliança com o sagrado.
1.2 Pensamento mitológico.
Organiza-se como matriz narrativo-cosmológica que oferece valor às experiências fundamentais (origens, morte, ordem/caos). Não opera como “crença dogmática”; funciona como sistema simbólico que estrutura oposições, mediações e ciclos (Lévi-Strauss), ou, noutros termos, como forma simbólica (Cassirer) que dá forma a um mundo vivo. A sua verdade é semântica e estruturante, não pode ser verificada nos termos da ciência.
1.3 Pensamento crítico.
Define-se por procedimentos de justificação pública: problematiza pressupostos, explicita critérios, aceita refutação e revisão. É reflexivo (capaz de pôr em causa as próprias categorias) e metodológico (argumentação, evidência, confronto intersubjetivo). Não exclui símbolos à partida; interroga-os quanto a funções, efeitos e limites (Ricoeur: hermenêutica da suspeita e “segunda ingenuidade”).
2) Símbolos em prática: exemplos religiosos, mitológicos e críticos
2.1 Religioso. No campo religioso, o símbolo atua como mediação normativa com o transcendente. Exemplos paradigmáticos incluem:
a) Ascetismo monástico cristão, em que o hábito, o claustro ou o jejum operam como signos de separação e pureza, instaurando um estado espiritual reconhecido pela comunidade;
b) Escatologia islâmica, onde as imagens do Jardim e do Fogo funcionam como dispositivos simbólicos de regulação da conduta, inscrevendo no presente a antecipação do juízo futuro;
c) Eucaristia cristã, em que o pão e o vinho não apenas “representam”, mas tornam presente (realmente ou simbolicamente, consoante a teologia) o corpo e sangue de Cristo.
2.2 Mitológico.
No campo mitológico, o símbolo organiza narrativas cosmológicas que estruturam tempo, espaço e destino. Alguns exemplos:
a) Na mitologia grega, Perséfone no Hades simboliza o ciclo agrícola — morte e renascimento da vegetação;
b) Entre os Shipibo-Conibo, Ronin, a anaconda primordial, não “representa” apenas uma origem, mas continua a organizar padrões gráficos (kené) e modos de habitar o mundo;
c) Na mitologia hindu, o oceano cósmico ( soa shanty eu sei) agitado por deuses e demónios para extrair o néctar da imortalidade (amrita) simboliza a tensão permanente entre ordem e caos.
2.3 Nas sociedades contemporaneas o símbolo persiste como resíduo de um pensamento religioso e mitológico:
a) O ascetismo secular contemporâneo (dietas, regimes de performance corporal, “detox”) funcionam como rituais simbólicos de pureza e disciplina, sem enquadramento religioso;
b) A economia monetária assenta no dinheiro como signo fiduciário: não tem valor porque representa ouro, mas porque a prática coletiva o reconhece como válido;
c) O Estado-nação mobiliza bandeiras, hinos e emblemas que convocam pertença e uma disposição para o sacrifício, sem exigir fé religiosa explícita; mas seguindo a mesma lógica do pensamento religioso- por concepções soteriológicas e por regimes de "autoridade".
d) A ciência e a educação mantêm rituais de legitimação (defesas de tese, vestes académicas, publicações indexadas) que funcionam como símbolos de "autoridade" e passagem.
3) Síntese: Símbolo e Pensamento Crítico
O poder simbólico não é redutível ao religioso nem ao mitológico, embora esteja em ambos. Atua como prática ontológica de inscrição: instaura presença, organiza vínculos, produz efeitos na própria realidade.
A questão central é que acreditar na força operatória do símbolo não suspende o pensamento crítico. A sociedade contemporânea enaltece a falsa sensação de pensamento crítico, enquanto que, paradoxalmente age por mecanismos mitológicos e religiosos que instrumentalizam o símbolo de forma superficial.
Posto isto: o simbólico não contradiz o crítico, o pensamento crítico exige um conhecimento profundo do símbolico. O reconhecimento do símbolo enquanto operador de realidade não implica abdicar da análise ou da suspeita. Como sublinha Paul Ricoeur, após a hermenêutica da suspeita é possível uma “segunda ingenuidade”: uma relação crítica mas afirmativa com os símbolos, que reconhece a sua potência sem os confundir com verdades absolutas. O pensamento crítico não elimina o poder simbólico: torna-o explícito, avalia os seus usos e reinscreve-o em novas práticas. O erro não está em reconhecer a eficácia simbólica, mas em naturalizá-la sem análise. Deste modo, o símbolo mantém a sua operatividade e presença, ao mesmo tempo que o pensamento crítico assegura o distanciamento necessário para evitar o dogma.
II. Poder Simbólico nas Sociedades Contemporâneas: o Dragão, a Serpente e a Borboleta
Se nas sociedades ancestrais o símbolo funcionava como operador de inscrição ontológica, nas sociedades contemporâneas assiste-se a um processo de erosão simbólica. O dragão, a serpente e a borboleta, que uso como exemplo aqui, constituíam matrizes de pensamento e ação. Cada um deles articulava forças, modos de habitar o mundo e tecnologias de inscrição coletiva.
A serpente, como mostram os rituais Hopi ou a cosmologia Huni Kuin, era mediadora entre humanos e forças vitais, portadora de saber e cura. O dragão, nas tradições europeias e orientais, encarnava o excesso do poder natural — fogo, tempestade, montanha — que só podia ser enfrentado em termos de relação, não de domínio instrumental. A borboleta, em várias culturas, era símbolo da alma e da metamorfose: garantia a inteligibilidade da passagem entre estados de vida, morte e renascimento. A minha proposta aqui é: ainda que frequentemente associados ao pensamento mitologico e religioso, estes símbolos ultrapassam-no.
Dragão, serpente e borboleta são símbolos de caráter coletivo — aparecem em várias culturas, com sentidos partilhados mas a inscrição simbólica nunca é apenas coletiva; é também singular. Cada ser, ao relacionar-se com o símbolo, reinscreve-o na sua própria existência. E é aí que o símbolo manifesta poder: não porque “representa” mas porque agencia efeitos reais, ao reorganizar percepções, organizar práticas, vínculos e modos de estar no mundo.
O símbolo não é apenas semântico, mas pragmático é magia no sentido operatório do termo.
No entanto, estes símbolos foram reduzidos a ornamentos, clichés visuais ou marcas de consumo. O poder de estruturar mundos foi substituído por signos vazios, que circulam sob lógicas de mercado na cultura de massas, em vez de operarem como tecnologias de inscrição (que organizam tempo, espaço, comunidade), são consumidos como imagens superficiais.
O resultado é um défice simbólico: sociedades contemporâneas que multiplicam sinais, logótipos, “memes”, mas carecem de símbolos eficazes que dêem forma ao sentido e sustentem processos de inscrição. A abundância de imagens não corresponde a densidade simbólica; pelo contrário, revela um "contrabando" simbólico que retira ao símbolo potência, agência e valor. O excesso visual convive com a pobreza ontológica.
É importante assumir a destinção: uma imagem nao é uma inscrição. Uma imagem é uma imagem, ela pode ou não ser dotada de poder simbólico, enquanto que, a inscrição tem em sí poder simbólico intrínseco.
III. Conclusio: Como evitar o colapso simbólico ocidental
Se a prática mágica se define como gesto de inscrição operativa sobre o real, e se o poder (simbólico) manifesta a sua capacidade relacional, a conclusão só pode ser a seguinte: não existe acção humana sem dimensão simbólica. A inscrição cria realidade.
A tradição ocidental, ao reduzir o desenho a representação — e a magia a uma superstição "ridícula" — operou de forma a drenar duplamente os significados : separou o gesto da sua força ontológica e neutralizou a eficácia simbólica em nome da racionalidade instrumental. Esta operação produz um défice contemporâneo simbólico: vivemos enclausurados por imagens, mas órfãos de inscrição. A multiplicação de signos técnicos (logótipos, ícones digitais, insígnias clubistas, bandeiras superficialmente ideologicas) não substitui a densidade simbólica que organiza a experiência humana.
O dragão, a serpente, a borboleta — enquanto operadores ancestrais — lembram-nos que o símbolo não é um ornamento metáforico; é um princípio de agência. O seu eclipse nas sociedades contemporâneas não resulta da obsolescência, mas da exclusão: aquilo que não pode ser traduzido nem pode ser reduzido ao seu valor de mercado ou a um código disciplinar é descartado como arcaico, bruto ou "primitivo". Ao negar a Magia- agência simbólica- perde-se a possibilidade de inscrever realidade fora dos circuitos normativos de poder.
Para evitar o colapso simbólico ocidental é importante restituir ao gesto a sua profundidade: todo o ato simbólico é operatório, e toda a prática humana é, de algum modo, mágica: cria uma inscrição na realidade. Reconhecer isto implica reinscrever o pensamento crítico no terreno da ontologia. O desafio contemporâneo é recuperar o símbolo como tecnologia de inscrição e não como signo técnico.
Na minha prática ontológica de inscrição simbólica, volto a inscrever a borboleta não como signo técnico de um código de consumo mas como código de alma.
Apêndice I – Contra a Representação
A ideia de desenho como representação ou mímesis é-me profundamente frustrante. Reduzir o desenho a cópia do visível não apenas empobrece a sua dimensão operativa, mas obscurece a função originária da inscrição: instaurar presença, abrir relação entre mundos, tornar visível o invisível. A inscrição não nasce para duplicar o real, mas para o transformar.
A mímesis na tradição ocidental corresponde a uma instrumentalização da prática "artística "ao serviço de regimes de poder. Desde a Antiguidade, a representação visual foi mobilizada como tecnologia de legitimação. Os retratos imperiais romanos, por exemplo, difundidos em moedas, estátuas e murais, funcionavam como mecanismos de ubiquidade política: a imagem do imperador garantia a sua presença mesmo onde o corpo estava ausente, apresentando-se como reflexo fiel de uma "autoridade" intocável.
Na Idade Média e no Renascimento, a representação foi igualmente apropriada por instituições hegemónicas. A Igreja católica instrumentalizou a pintura e o desenho como meios "pedagógicos" e doutrinários, reforçando a centralidade das figuras de Cristo, da Virgem e dos santos. O Concílio de Trento (1545–1563) chegou a legislar sobre a produção e circulação de imagens religiosas, entendendo-as como ferramentas de disciplina espiritual e de uniformização da fé (Freedberg, 1989). Neste quadro, a mímesis servia não a experiência do invisível, mas a autoridade da instituição.
No Renascimento, ao enaltecer a figura do artista como “génio” consolidou-se a associação entre mímesis e poder. Giorgio Vasari, nas suas Vite de’ più eccellenti pittori, scultori, e architettori (1550), narra a história da arte como sucessão de “mestres” que, progressivamente, se aproximaram da perfeição da representação naturalista. Esta narrativa elevou o desenho como fundamental mas com o custo objetivo de o reduzir a um critério de fidelidade ao real. A inscrição humana, antes operatória e mágica, foi instrumentalizada pelas sociedades colonizadoras ocidentais. O desenho nunca foi uma prática de domínio muito menos um instrumento de representação.
A mímesis, enquanto paradigma dominante, foi não só um atentado epistemológico ao conhecimento da inscrição como manifestação do invisível na matéria, como também ferramenta de domesticação simbólica. Contra essa tradição, o desenho deve ser reivindicado como inscrição operativa, capaz de produzir realidades e de aceder ao invisível que a história oficial da arte procurou silenciar.
Apêndice II– Contra a Interpretação
A leitura de Georges Bataille em Lascaux ou la Naissance de l’Art (1955) é um exemplo de como o gesto artístico inaugural foi muitas vezes mal interpretado através de categorias modernas. Para Bataille, desenhar o bisonte equivalia a um ato de fusão erótica e de sacrifício — projeções que dizem mais sobre a sua própria visão da sexualidade e da morte do que sobre a prática "pré-histórica". O gesto primeiro não pode ser reduzido a “mummy issues” nem a uma dramatização da masculinidade em crise; antes de tudo, trata-se de inscrição ontológica, abertura de relação e presença.
O mesmo ocorre noutras leituras: Gombrich subordinou o desenho à lógica da representação técnica; Benjamin à aura ritual; Gell à eficácia social. Cada um, à sua maneira, projetou conceitos secundários sobre o gesto, obscurecendo a sua simplicidade radical (radix): desenhar não é imitar, mas inscrever, criar o que antes não existia na própria realidade. Cassirer, Merleau-Ponty, Duchamp e Malraux aproximam-se mais dessa dimensão, ao reconhecerem o desenho como forma simbólica ou como expansão do ser-no-mundo.
A crítica, portanto, não se dirige apenas a Bataille, mas a uma tendência geral: explicar o gesto primeiro a partir de categorias externas — erotismo, técnica, ritual, representação — em vez de o reconhecer como inscrição operatória que transforma e convoca presença.
A interpretação é um atentado ao que inteligimos como primeiro gesto de criar realidade: o desenho.