Chikki 101 – Sobre Unicórnios

I – Indivisível

Passei demasiado tempo a investigar unicórnios, foi assim que percebi que é um tema fundamental na discussão sobre conhecimento, poder e pensamento humano. O humano experiencia o mundo como multiplicidade — fragmentos — de uma divisão identitária, ideológica e disciplinar. No entanto, a consciência não suporta a dispersão infinita sem procurar um princípio de unidade. Se não houver uma forma de inscrição do Uno, a experiência do ser fractura-se por incoerência em relação ao mundo externo. O unicórnio surge aqui como figura que inscreve a possibilidade de unidade.

A filosofia ocidental tentou formular esse Uno em conceitos abstratos — de Parménides a Plotino. Mas as culturas precisam de símbolos e signos acessíveis ao imaginário. O unicórnio é precisamente essa imagem: um só córnio, sinal material daquilo que não se divide nem se multiplica.

As variações são conhecidas. Nos Vedas, o ekasringa (“um só córnio”) aparece como singularidade cósmica (sim, escrevi mesmo “singularidade cósmica” — paciência). Na China, o qílín é sinal de harmonia originária. Na Pérsia, o karkadann era feroz e indomável, sempre único. No mundo greco-romano, Ctésias e Plínio descrevem-no como animal real, incorruptível. O cristianismo foi mais longe: o unicórnio tornou-se Cristo, unidade divina que resiste à fragmentação humana.

O que interessa é a lógica transversal: o unicórnio vem colmatar a ausência estrutural de unidade. Ele fixa, na imagem, aquilo que na abstração conceptual filosófica se perderia. É uma inscrição simbólica de coerência interna — e é isso que explica a sua presença em várias culturas, em várias geografias diferentes ao longo do tempo.

II – Incorruptível

O unicórnio não é apenas inscrição de unidade: simboliza também aquilo que não se corrompe.

Uma condição ontológica: a de resistir à degradação e ao tempo.

É por isso que, na tradição cristã, só pode ser capturado por uma virgem (lol). Mais do que metáfora religiosa: o Uno só pode ser acolhido no que é indiviso. Noutras culturas, encontramos a mesma inscrição: o karkadann persa neutraliza venenos; o qílín só surge em tempos de justiça; o ekasringa indiano encarna o ascetismo incorruptível. Em todos os casos serve como mediação simbólica para representar a moral incorruptível impossível ao humano de experienciar diretamente.

A crença não ficou no mito — tornou-se objeto sagrado. As presas de narval, vendidas como “córnios de unicórnio”, eram guardadas em tesouros de papas e reis como garantias de incorruptibilidade. Purificavam líquidos, afastavam venenos, protegiam a integridade dos corpos. O símbolo inscreveu-se em práticas sociais e políticas.

III – Indomável

Outra constante é a dimensão da indomabilidade. O unicórnio representa o que resiste à captura e ao domínio. Se há algo que a humanidade repete, é a tentativa de controlar, domesticar, submeter. O unicórnio é a inscrição simbólica de um limite a essa obsessão.

As referências concordam: Ctésias descrevia-o como impossível de capturar pela força, apenas pela astúcia da pureza; o karkadann era temido pela agressividade; o qílín só aparecia em tempos de harmonia cósmica, nunca à ordem humana. (Sim, escrevi “cósmica” outra vez — não me julguem). Tudo converge na mesma ideia: algo que não se deixa reduzir nem apropriar.

O unicórnio lembra-nos que o real não é apropriável. A sua ferocidade simbólica admite que a coerência interna não pode ser conquistada pela violência. O unicórnio inscreve na consciência a ideia de poder interno — que não pode ser eliminado.

IV – Inapropriável

A sociedade ocidental construiu-se sobre o signo da compartimentalização disciplinar, da hierarquia e da separação entre povos. O unicórnio é o oposto: lembra que a integridade não depende da lei externa, mas de uma consistência interior que não se divide nem se deixa corromper. Não é domesticável, não obedece à captura pela força, não surge quando é convocado.

É nesta função que o unicórnio se torna figura crítica. Como último signo de uma moral fundada na coerência interna, opõe-se à fragmentação e à hegemonia.

Por isso, o unicórnio não desapareceu apesar de séculos de exclusão do campo do saber. Mesmo ao ser conspurcado simbolicamente ao longo do tempo — transformado em objeto kitsch, em imagem comercializável, em lenda infantil, em analogia de ingenuidade — o poder simbólico do unicórnio permaneceu intacto.

Estas tentativas sistemáticas de reduzir o poder do unicórnio denunciam-no como ameaça às estruturas desequilibradas de poder humano. O unicórnio é, em última instância, símbolo de moral e de coerência que subsiste quando tudo o resto se fragmenta.

V – Íntegro

O que percebi também nesta investigação é que o unicórnio é um problema político: porque não ataca nem defende — ele simplesmente é. A sua força não está na oposição ao poder, mas na criação de um espaço próprio onde o poder institucional não consegue sequer entrar.

Enquanto outros mitos são capturados, adaptados e convertidos em metáforas úteis à hegemonia, o unicórnio só existe em fidelidade a si próprio. Não disputa território: cria o seu.

O unicórnio não é metáfora de resistência — é metáfora de criação. Não nega a ordem instituída, abre outro plano de existência, um plano que não é dado pelo centro normativo. A sua moral não é reativa, é originária: não resulta de confronto, mas de fidelidade à sua própria forma.

Acreditar em unicórnios é acreditar que ainda existem lugares onde a coerência interna não pode ser corrompida pela estrutura externa. Eles são reais. 

Anexo – Tradições do Unicórnio ao longo do tempo (Chrónos) e das várias geografias

Uma breve síntese da investigação

Índia – Ekasringa

Nos hinos védicos e nos épicos posteriores, o ekasringa (“um só córnio”) surge como figura singular associada a sábios eremitas. Encarna o ascetismo incorruptível: afasta-se do mundo, pratica meditação e guarda a sua integridade moral. O córnio único é sinal de uma unidade cósmica concentrada num só ser. A tradição indiana trata-o como expressão de uma verdade espiritual: o Uno é prática de vida, não mera abstração metafísica.

China – Qílín

O qílín é um híbrido (com traços de cavalo, cervo, boi e dragão), mas a sua singularidade simbólica está no facto de aparecer apenas em momentos de harmonia “cósmica”. Surge para anunciar o nascimento ou a morte de um governante sábio e justo. A sua presença, por isso, não é manipulável: não pode ser convocado pelo humano, manifesta-se apenas quando o mundo está em equilíbrio moral. O qílín reforça a ideia de que o unicórnio é marcado por uma ordem interna do mundo, e não um instrumento de poder humano.

Pérsia – Karkadann

Nos textos persas e árabes medievais, o karkadann é descrito como criatura feroz, com um único córnio longo, habitante dos desertos. Todos os animais fogem da sua proximidade devido à sua agressividade, mas acreditava-se que o seu córnio neutralizava venenos e possuía propriedades curativas. Essa ambivalência é crucial: o unicórnio persa é ao mesmo tempo destrutivo e protetor, sinal de que a unidade não se deixa reduzir à lógica simples da domesticação — é força que ameaça e preserva.

Mundo Greco-Romano – Ctésias e Plínio

Ctésias, médico grego do século V a.C., relatou ter conhecido o unicórnio na Índia: corpo de cavalo, cabeça de cervo, patas de elefante e um córnio de cerca de 70 cm. Plínio, no Naturalis Historia, reforça essa imagem, descrevendo-o como animal real, feroz e impossível de capturar vivo. É significativo que o unicórnio tenha sido tomado como objeto de “zoologia”, confundindo mito e ciência. Desde cedo, a inscrição simbólica do Uno passou a circular também pelo discurso da verdade empírica, revelando como a própria ciência nasce contaminada pelo imaginário.

Cristianismo – O Unicórnio como Cristo

Nos bestiaires medievais, o unicórnio tornou-se alegoria de Cristo: incorruptível, puro, uno. Só repousava no colo de uma virgem — metáfora da encarnação divina e, em simultâneo, dispositivo de controlo da sexualidade feminina. Ao apropriar-se do símbolo, o cristianismo fixou-o na memória ocidental. Essa apropriação ambígua mostra a força do signo: apenas ao ser integrado na teologia pôde sobreviver, mas a sua integridade simbólica manteve-se apesar da instrumentalização.

Nota: O unicórnio é uma figura de circulação transcultural: encontramos registos desde a Mesopotâmia até à Europa medieval, passando por tradições africanas, indianas, persas, chinesas e árabes. A minha pesquisa é mais profunda do que as referências aqui apresentadas; contudo, optei por destacar apenas estas cinco tradições — ekasringa (Índia), qílín (China), karkadann (Pérsia), relatos greco-romanos e bestiários cristãos — por constituírem as fontes centrais analisadas no artigo de base. Esta seleção não esgota a complexidade do tema, mas serve para ilustrar como o símbolo do unicórnio se reinscreve, de forma recorrente, em diferentes geografias e contextos históricos.

Anterior
Anterior

Chikki 101 – Sobre Poder e Magia nas sociedades contemporâneas

Próximo
Próximo

Chikki 101: Sobre Poder e Ocultismo nas Sociedades Contemporâneas