Chikki 101: Sobre Poder e Ocultismo nas Sociedades Contemporâneas
Notas sobre Poder e Ocultismo nas Sociedades Contemponeas:
A academia como culto de exclusão epistemica
I : O “oculto” como regime de saber
Antes de mais quero esclarecer que não pretendo oferecer uma reconstituição histórica exaustiva, mas mobilizar imagens do passado para pensar os mecanismos de exclusão do saber no presente.
Platão e a distinção entre doxa e episteme
Em Platão, o conhecimento está organizado em hierarquia. A doxa refere-se ao conhecimento vulgar, baseado na percepção sensível, sujeito a erro e ilusão. Já a episteme corresponde ao conhecimento verdadeiro, que só é acessível à alma treinada na dialética e capaz de contemplar as Formas. A Alegoria da Caverna em A República (Livro VII) ilustra este processo: os prisioneiros, acorrentados, veem apenas sombras projetadas na parede, acreditando que são a realidade; apenas aquele que se liberta e enfrenta a dor da luz do sol atinge o conhecimento das ideias. Este esquema filosófico não é apenas metafórico: implica que o saber verdadeiro não é democrático nem universal, mas reservado a quem se submete a uma iniciação filosófica. O “oculto” em Platão é, portanto, o domínio do real inacessível à maioria.
Platão funda também a ideia de que a verdade deve ser protegida do vulgo. Em diálogos como Fedro, discute-se a limitação da escrita: o verdadeiro conhecimento deveria ser transmitido oralmente, de mestre a discípulo, porque só a relação pedagógica garante que o saber não é mal interpretado. Assim, já aqui se inscreve a noção de que o conhecimento possui um código de transmissão seletivo, onde o segredo é condição.
Mistérios iniciáticos da Antiguidade
Os chamados mistérios de Eleusis, praticados na Grécia desde pelo menos o século VII a.C., constituem um dos exemplos mais claros de saber oculto. O culto centrava-se na deusa Deméter e na narrativa do rapto de Perséfone. Os participantes (mistai) passavam por rituais de purificação e iniciação que envolviam jejum, ingestão de uma bebida sagrada (kykeon), dramatizações simbólicas e visões noturnas. O conteúdo dos rituais era rigorosamente secreto: revelar o que acontecia em Eleusis era punido com a morte. Autores como Platão e Cícero testemunham que a experiência transformava radicalmente a visão da vida e da morte. O segredo era essencial: sem ele, o mistério perdia potência.
Outros cultos, como os órficos e dionisíacos, também estruturavam o saber em torno da iniciação. No orfismo, textos como as lâminas de ouro de Túrio ou Creta (séculos IV–II a.C.) mostram instruções deixadas ao iniciado para a vida após a morte, escritas de forma codificada. O iniciado devia memorizar as palavras exatas para atravessar o submundo. Aqui, o conhecimento é literalmente salvífico — e só quem foi preparado tem acesso à fórmula. Estes exemplos demonstram que o oculto, na Antiguidade, era menos superstição e mais uma tecnologia simbólica da memória e da transcendência.
O Corpus Hermeticum e a tradição hermética
Entre os séculos II e IV da era comum, em Alexandria, foi compilado o Corpus Hermeticum, atribuído ao mítico Hermes Trismegisto, uma fusão das figuras de Hermes grego e Thoth egípcio. Estes textos apresentam uma cosmologia onde o universo é vivo, animado por um princípio divino, e onde o ser humano é visto como reflexo do cosmos (microcosmos). O acesso ao conhecimento hermético, porém, era restrito: os diálogos apresentam sempre uma figura de mestre que transmite saber a um discípulo preparado, muitas vezes após provações. O conteúdo é simultaneamente filosófico e operativo, articulando contemplação com práticas espirituais.
O hermetismo reforça a ideia de que o segredo é parte constitutiva do saber.
Antoine Faivre e a definição moderna de esoterismo
Antoine Faivre (1994), considerado o fundador dos estudos académicos sobre esoterismo, define o esoterismo ocidental através de seis características, entre as quais: (1) correspondências ocultas entre todas as partes do universo; (2) natureza viva; (3) imaginação e mediações; (4) transmutação; (5) prática da concórdia; (6) transmissão de mestre a discípulo. Destes elementos, o sexto é o mais revelador: o esoterismo não é apenas um corpo de doutrinas, mas um modo de transmissão seletiva, que implica segredo, iniciação e disciplina.
Wouter Hanegraaff e o “saber rejeitado”
Wouter Hanegraaff (2012) acrescenta outro ponto fundamental: o oculto não é apenas aquilo que os próprios praticantes quiseram manter secreto, mas também aquilo que foi rejeitado pelas instituições dominantes. No seu livro Esotericism and the Academy, ele mostra como o esoterismo foi excluído do cânone académico europeu entre os séculos XVII e XIX, sendo rotulado como “irracional” ou “supersticioso”. A exclusão criou o campo do “oculto” como categoria. Assim, o oculto não é só uma prática de segredo interno, mas também um produto da marginalização externa.
Nota sobre o arquivo e a narrativa histórica
A ideia de acrescentar esta nota surgiu numa conversa com a minha amiga a Santa, que trabalha com arquivo. A questão é fundamental: quem decide o que é arquivado para a posteridade e o que é deixado de fora? O arquivo nunca é neutro; é um dispositivo de poder. Como lembra Michel Foucault em A Arqueologia do Saber (1969), o arquivo é um sistema de poder– que facilmente se pode tornar num catálogo de violência —rege o que pode ser dito, conservado e transmitido numa determinada época. O que não é arquivado tende a cair no silêncio ou na invisibilidade.
Jacques Derrida, em Mal d’Archive (1995), vai mais longe ao afirmar que “não há poder político sem controlo do arquivo”. Arquivar significa sempre selecionar, e selecionar implica excluir. O arquivo não guarda apenas a memória; produz também o esquecimento. Assim, o que hoje consideramos “oculto” muitas vezes resulta de uma decisão histórica de não conservar, de não validar ou de não reconhecer determinado saber como digno de permanência.
O oculto está intrinsecamente ligado a um problema de arquivo e de historiografia: quem escreve a narrativa da história?
II. Exclusão e repressão dos saberes considerados perigosos
A repressão do saber na história europeia não foi um acidente, mas um processo sistemático de exclusão de práticas vistas como ameaça à ordem. A Igreja Católica desempenhou um papel central nesse movimento, sobretudo entre os séculos XV e XVII. O Malleus Maleficarum (1487), de Heinrich Kramer e Jacob Sprenger, legitimou juridicamente a perseguição das chamadas “bruxas”, autorizando tortura e execução. Como mostra Silvia Federici em Calibã e a Bruxa (2004), a caça às bruxas integrou a transição para o capitalismo, eliminando formas de autonomia coletiva que contrariavam a disciplina do trabalho e do corpo.
Saberes comunitários e a sua eliminação
Na Idade Média tardia, práticas de cura, parto e regulação da fertilidade circulavam oralmente, fora do controlo institucional. Parteiras usavam ervas como arruda ou poejo; curandeiras aplicavam infusões de salgueiro, antecipando a farmacologia moderna. Estes saberes eram eficazes no seu contexto e sustentavam a sobrevivência comunitária. O perigo não residia apenas na religião, mas na autonomia que conferiam às aldeias. Classificá-los como “bruxaria” foi um dispositivo de repressão: substituiu sistemas comunitários por saberes controlados pela medicina universitária, pela teologia e pelos tribunais inquisitoriais.
Filosofias eruditas perseguidas
Também o Renascimento não quebrou esta lógica de exclusão. Figuras como Giordano Bruno foram punidas não por superstição, mas por visões incompatíveis com a ordem católica. Bruno defendia um universo infinito, habitado por múltiplos mundos, relativizando a centralidade da Igreja e do homem. Foi queimado em 1600.
A expansão colonial a partir do século XVI universalizou o processo. Cosmologias ameríndias, africanas e asiáticas foram classificadas como idolatria e superstição. A missão cristã impôs uma narrativa única de salvação e reprimiu pedagogias comunitárias baseadas na oralidade, na música, na dança e no mito. Como mostra Ngũgĩ wa Thiong’o em Decolonising the Mind (1986), a violência incluiu também a dimensão linguística: interditar línguas indígenas significou bloquear modos próprios de pensar e de transmitir o mundo. Não se perdeu apenas “diversidade cultural”: perdeu-se conhecimento humano, através de um verdadeiro terrorismo epistémico.
Do esoterismo à marginalização académica
A partir do século XVII, saberes como astrologia, alquimia ou cabala foram progressivamente expulsos do espaço académico, apesar do seu papel na ciência nascente. Isaac Newton dedicou mais tempo à alquimia do que à física matemática; Johannes Kepler escreveu tratados de astrologia ao lado da astronomia. O positivismo do século XIX reclassificou-os como irracionais. Como argumenta Wouter Hanegraaff (2012), o “oculto” moderno é precisamente o resultado desta exclusão: um saber rejeitado, mas estruturado, com uma metedologia própria, com efeitos no seu campo "disciplinar".
A repressão dos saberes considerados "perigosos"– os da comunidade – foi um processo estruturou, ou melhor, destruturou a história ocidental. Da caça às bruxas à colonização e à marginalização do esoterismo, a lógica foi a mesma: controlar o acesso ao conhecimento, eliminar a sua circulação comunitária e reabsorver apenas aquilo que servia Estado, Igreja ou mercado.
Nota sobre a saúde reprodutiva
A referência às práticas medievais de regulação da fertilidade não deve ser confundida com crítica à contraceção moderna. O ponto é outro: antes da medicalização, comunidades detinham conhecimentos próprios de regulação do corpo, transmitidos oralmente. O que se perdeu não foram apenas técnicas, mas sobretudo autonomia coletiva. Reconhecer isto não implica recusar avanços contemporâneos em saúde, mas lembrar que o saber sobre o corpo foi historicamente expropriado às pessoas comuns e recentrado em instituições.
Nota terminologica: Superstição, Oculto e Esotérico
O termo superstição corresponde a um instrumento semântico de classificação usado para deslegitimar práticas de conhecimento fora do quadro hegemónico. Ao longo da história europeia, chamar superstição a determinados saberes provocou a sua exclusão e repressão, posto isto, o uso da palavra não prejudica a validade interna do saber.
De forma semelhante, as noções de oculto ou esotérico designam, na sociedade contemporânea, um conjunto de saberes rejeitados pelas instituições científicas e religiosas dominantes. Como observa Hanegraaff (2012), o “oculto” não é um campo irracional em si mesmo, mas a consequência de processos históricos de marginalização académica.
Na Antiguidade, tendo como exemplo escolas pitagóricas ou mistéricas– o termo “esotérico” referia-se a ensinamentos filosóficos ou religiosos transmitidos apenas a discípulos próximos. Esotérico vem do grego esōterikos, que significa “interior” ou “destinado aos de dentro”.
III. Quem guarda o saber? Afinal, o que é o ocultismo?
O oculto é o saber que não é para todos. O que o define não é tanto o conteúdo, mas o modo como circula: depende de segredo, seleção e transmissão controlada. Historicamente, o saber foi guardado por autoridades específicas, mas sempre em função da comunidade. Parteiras, curandeiras ou anciãos não reservavam conhecimento para distinção individual, mas para assegurar a sobrevivência coletiva — curar doenças, assistir nos partos, regular a fertilidade, preservar a memória mítica. O acesso era restrito, mas o objetivo era comunitário.
Na sociedade contemporânea, essa lógica foi invertida. O saber deixou de servir a comunidade e passou a servir a exclusão. A escola pública, que se apresenta como espaço de democratização, é o primeiro ritual de exclusão iniciática: filtra e hierarquiza desde cedo quem pode continuar no caminho do saber e quem é descartado. Como mostram Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron em La Reproduction (1970), a escola legitima como mérito o que é privilégio de origem. Os alunos que já possuem capital cultural familiar têm melhores resultados, enquanto os de contextos "desfavorecidos" são estigmatizados como menos capazes.
Em Portugal, essa realidade manifesta-se nas taxas mais elevadas de abandono escolar, na segregação territorial e no peso crescente das explicações privadas como complemento quase obrigatório. O currículo centrado em códigos culturais dominantes, a avaliação padronizada e a disciplina da linguagem funcionam como barreiras de entrada. Assim, o saber, que historicamente servia a comunidade, transforma-se em instrumento de distinção: permite a alguns prosseguir até níveis superiores e exclui precocemente outros, consolidando desigualdade social.
Um dos mecanismos mais visíveis desta lógica em Portugal é a publicação anual dos rankings das escolas, baseados sobretudo nos resultados dos exames nacionais. À primeira vista, parecem medir a qualidade pedagógica, mas na prática funcionam como espelho do capital social e económico das famílias. As escolas em zonas de maior rendimento surgem no topo, enquanto as de territórios periféricos ou com populações mais vulneráveis aparecem nos lugares inferiores. Estes rankings não revelam mérito, mas cristalizam desigualdades: as "boas" escolas reforçam prestígio, enquanto as fragilizadas são estigmatizadas e perdem recursos. Assim, as diferenças sociais transformam-se em classificações naturalizadas, legitimando a desigualdade como se fosse resultado de esforço individual ou competência institucional, quando refletem sobretudo a origem social dos alunos.
Esta passagem do saber comunitário para o saber institucional pode resumir-se assim:
a) Antes: transmitido por parteiras, curandeiras e anciãos, com acesso restrito mas orientado para o bem comum e a sobrevivência coletiva.
b) Hoje: transmitido pela escola e pela academia, com acesso restrito que serve a exclusão, a distinção social e a acumulação de capital simbólico.
A analogia com a academia torna-se evidente. O saber académico funciona como regime seletivo do oculto. O acesso ao ensino superior está condicionado por desigualdades sociais: só quem dispõe de capital económico e cultural consegue atravessar os filtros e pagar propinas. O grau de mestre implica literalmente a relação com um mestre, figura de autoridade que valida a passagem a um nível superior de conhecimento, tal como nas tradições iniciáticas. As provas públicas, as defesas e as cerimónias académicas são equivalentes a rituais de passagem, que marcam quem é autorizado a integrar a comunidade dos “iniciados” do saber científico.
Deste modo, o ocultismo deve ser entendido não como curiosidade marginal, mas como regime epistemológico: um sistema que define quem pode saber, em que condições e sob que custos. Na sua essência, o oculto é o saber guardado por estruturas de poder — sejam sacerdotes antigos ou instituições académicas contemporâneas.
A ironia: o verdadeiro ocultismo é a academia
A ironia histórica é que aquilo que chamamos ocultismo — saber restrito, reservado a iniciados, transmitido sob condições de entrada — corresponde hoje, de forma quase literal, à própria academia. Durante séculos, oculto foi o nome dado a práticas populares e eruditas marginalizadas, perseguidas ou excluídas das instituições. No entanto, a universidade contemporânea opera segundo os mesmos princípios: guarda o saber, define critérios de iniciação, impõe provas de passagem e estabelece barreiras económicas e simbólicas ao acesso.
A academia apresenta-se como espaço de transparência quando na realidade funciona como comunidade restrita. O acesso está condicionado por propinas, bolsas limitadas, capital cultural e redes de contacto. Tal como nos antigos mistérios, o aspirante ao saber deve cumprir etapas iniciáticas: a licenciatura, o mestrado, o doutoramento. Cada passagem exige provas formais, perante mestres que detêm autoridade para reconhecer ou rejeitar o candidato. O grau académico é o equivalente contemporâneo a um selo iniciático, que legitima a entrada no círculo restrito de quem tem direito a falar em nome do saber.
Além disso, o conhecimento produzido pela academia circula sob formas que reforçam o seu carácter restrito. Os artigos científicos, muitas vezes inacessíveis ao público por estarem atrás de paywalls, são redigidos em linguagem técnica destinada a especialistas. O saber apresenta-se como universal, mas é guardado por barreiras económicas e simbólicas que o tornam inacessível à maioria. Neste sentido, a ciência académica não é menos esotérica do que os rituais antigos: também ela exige códigos de linguagem, provas de pertença e legitimação hierárquica.
A ironia é dupla. Por um lado, a academia construiu a sua legitimidade precisamente contra o chamado “oculto”, acusando-o de superstição e irracionalidade. Por outro, reproduz no seu funcionamento interno os mesmos mecanismos de restrição, segredo e exclusão. O verdadeiro ocultismo não está apenas nos manuscritos herméticos ou nos rituais camponeses, mas no quotidiano académico: nas regras de acesso, nos ritos de passagem, no rigor conceptual da linguagem, na dependência em relação a mestres e instituições que guardam o saber como capital simbólico.
Assim, a academia revela-se como uma prática de ocultismo que é legitimada pelo Estado: o espaço onde o segredo do acesso ao saber está disfarçado de mérito; onde a exclusão não é reconhecida, mas naturalizada como seleção justa. O verdadeiro oculto hoje não está escondido em sociedades discretas, mas à vista de todos, dentro da instituição que proclama a universalidade do conhecimento.
Uma breve reflexão post-scriptum: Sobre terrorismo epistêmico
Lamento profundamente que o meu próprio percurso de conhecimento esteja inevitavelmente ferido, inscrevendo a cicatriz da hegemonia branca. As categorias, autores e referências a que tenho acesso foram cunhados por séculos de colonialismo intelectual, onde determinados saberes foram preservados e canonizados enquanto outros foram silenciados, eliminados ou nunca chegaram a ser arquivados. A sensação é a de que o meu horizonte de pensamento é já uma seleção prévia feita por instituições que decidiram o que merecia ser transmitido e o que podia ser perdido.
Provavelmente, muitos outros sistemas de conhecimento — indígenas, africanos, orais, comunitários, ou de povos injustamente conotados como "primitivos"— foram suprimidos da história antes de poderem ser reconhecidos. O que resta é um arquivo parcial, que me condiciona a pensar a partir de uma grelha de conceitos eurocêntrica, mesmo quando o meu interesse é procurar alternativas.
O que escrevo, escrevo por amor ao saber– ao que nos resta do saber. Escrevo com humildade e honestidade intelectual na esperança de que a humanidade não volte a repetir, da mesma forma, os erros do passado. Esta consciência não é apenas um lamento pessoal: é também denúncia política de que o verdadeiro oculto da história é a massa de saberes que nunca chegaram até nós, porque foram deliberadamente excluídos da memória.