Chikki 101- Sobre Hipocrisia (hypokrisis)

Nota crítica sobre paywall e o mercado do saber académico

Apesar de ser maioritariamente financiado por fundos públicos, o conhecimento científico não está livremente acessível à sociedade que o sustenta. O acesso ao saber produzido em contexto académico encontra-se condicionado por barreiras económicas impostas por editoras e instituições que operam segundo lógicas de mercado. Assim, embora proclamado como bem universal, o conhecimento científico permanece inacessível para grande parte dos cidadãos, a não ser que estes disponham dos recursos financeiros necessários para ultrapassar tais restrições.

Um dos paradoxos centrais da academia contemporânea consiste, portanto, no facto de a produção de conhecimento académico edificada sobre a fantasia de ser um bem público, corresponde progressivamente a uma lógica de nicho de mercado através de mecanismos de acesso restrito. A desigualdade manifesta-se desde os primeiros níveis de escolaridade: crianças provenientes de contextos socioeconómicos desfavorecidos enfrentam maiores dificuldades em aceder a condições de estudo estáveis, o que se reflete no seu desempenho académico. Este insucesso tende a reproduzir-se em ciclos intergeracionais de exclusão, em que a precariedade das famílias condiciona as possibilidades educativas das crianças, perpetuando o mesmo padrão de vulnerabilidade social. Embora existam instrumentos de apoio, como bolsas de estudo, estes são limitados e atribuídos, na maioria das vezes, a estudantes que já apresentam elevado "rendimento académico", o que acentua as desigualdades de partida.

No ensino superior, as propinas assumem valores cada vez mais elevados, frequentemente desajustados face ao nível de vida da população. Porém, mesmo quando os estudantes ultrapassam esta barreira, enfrentam outro obstáculo: o acesso ao conhecimento científico. Grande parte da investigação científica é publicada em revistas indexadas que operam em regime de paywall, isto é, acessíveis apenas a instituições com capacidade financeira para suportar os custos de subscrição ou a indivíduos que possam pagar valores elevados por artigo. Esta situação evidencia um paradoxo: apesar de a ciência ser, em larga medida, financiada por fundos públicos, os cidadãos em geral — precisamente aqueles que a financiam — permanecem excluídos do acesso direto ao conhecimento produzido.

O paywall traduz-se, em termos práticos, na criação de uma barreira económica que segmenta o acesso ao saber em diferentes níveis: universidades de maior dimensão ou situadas em países com maior investimento público conseguem adquirir pacotes de subscrição a editoras internacionais, permitindo aos seus investigadores aceder a revistas de referência; já instituições mais pequenas ou em contextos periféricos ficam limitadas, recorrendo muitas vezes a soluções alternativas ou ilegais para aceder a artigos. Para investigadores independentes ou professores fora do sistema universitário, a situação é ainda mais "trágica": um único artigo pode custar entre 30 e 50 euros, valor que inviabiliza a consulta sistemática de bibliografia atualizada.

Importa ainda salientar que o paywall não se limita ao acesso dos leitores, mas estende-se também à publicação dos autores. Muitas revistas científicas de "prestígio" funcionam em modelo híbrido: os artigos ficam disponíveis apenas mediante subscrição, exceto quando o autor ou a sua instituição pagam taxas de publicação em acesso aberto (article processing charges). Estas taxas podem variar entre algumas centenas e milhares de euros, configurando mais um obstáculo para investigadores em início de carreira ou sem financiamento externo. O chamado open access, longe de ser universal, revela-se assim um privilégio reservado a quem tem capacidade económica para cobrir os custos da publicação.

A lógica do paywall é, portanto, dupla: restringe o acesso à leitura e condiciona a difusão do conhecimento. O mesmo padrão é visível em conferências científicas internacionais, onde as taxas de inscrição podem ultrapassar a capacidade financeira de estudantes e docentes em situação precária. Como resultado, o acesso a redes académicas e à circulação do saber permanece concentrado em grupos com maior capital económico e institucional.

Este cenário consolida uma verdadeira economia global do conhecimento, dominada por um número restrito de editoras que controlam simultaneamente os mecanismos de acesso e legitimação académica. Revistas como a Nature ou a Science exemplificam este processo, ao conjugar preços elevados de subscrição com custos igualmente elevados para a publicação em acesso aberto. O problema adquire particular relevância quando se considera que as referências cientificamente mais valorizadas — as chamadas revistas de quartil 1 (Q1), com maior fator de impacto — se encontram, em grande parte, sujeitas a este modelo. A exigência de fundamentar uma dissertação com bibliografia atualizada e de elevado impacto implica, assim, que o estudante dependa do acesso a estas publicações. Sem esse acesso, a investigação académica fica fragilizada, não por falta de rigor metodológico, mas por constrangimentos económicos que determinam quais as fontes possíveis de consultar.

Deste modo, a mercantilização do saber converte o acesso à ciência em capital simbólico e económico, reservado a quem dispõe de recursos financeiros. Esta dinâmica contradiz a retórica da ciência como bem universal e da escola pública como espaço de igualdade, revelando a persistência de um modelo de exclusão sustentado pelo privilégio económico.

A origem grega do termo hipocrisia (hypokrisis) remetia para o ato de representar em cena. A academia contemporânea repete esse mesmo acto: encena a ciência como bem público, mas entrega os seus resultados ao mercado. Estabelece-se, assim, uma contradição estrutural profundamente irónica: os cidadãos financiam a produção científica através dos seus impostos, mas o resultado desse investimento coletivo é apropriado por editoras privadas e devolvido à sociedade em regime de exclusão. A comunidade paga para que o conhecimento seja produzido e, paradoxalmente, volta a pagar para poder aceder ao mesmo. Esta dupla cobrança fragiliza a noção de ciência enquanto bem público e revela a essência da hipocrisia académica: proclamar universalidade enquanto privatiza o saber.

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