Chikki 101- Sobre Autoridade, Silenciamento e o Direito a Nomear: O sistema judicial como condicionamento Pavloviano
Sobre Autoridade, Silenciamento e o Direito a Nomear: O sistema judicial como condicionamento Pavloviano
Este ensaio parte de um episódio real de sanção institucional sobre um desenho realizado no espaço público para analisar criticamente as estruturas de poder, autoridade e silenciamento que actuam sobre os sujeitos. Através de uma abordagem autoetnográfica com referências em Foucault, Arendt, Bourdieu, Butler, Ahmed, Freire e hooks, argumenta-se que o poder institucional, ao operar por automatismo punitivo, anula o gesto e desqualifica a consciência. Distingue-se entre tipos de poder (coercivo, simbólico, relacional) e propõe-se uma noção de autoridade, fundada na acção com consequência, na responsabilidade moral e na produção de sentido. Defende-se que nomear o abuso e disputar os regimes de significação constitui uma acção política fundamental num contexto de normatividade automática e exclusão institucional.
1. A Girafa e a Tartaruga – Erro de Qualificação e Automatismo Punitivo
Quando estudava nas Caldas da Rainha, fiz um desenho — uma girafa e uma tartaruga de mãos dadas sob um arco-íris — numa estrutura de cimento que se assemelhava a uma moldura. Só mais tarde soube que o edifício era propriedade da câmara municipal. Enquanto desenhava, fui interpelada por dois agentes da autoridade:
— “O que é que está a fazer?” Respondi: — “Uma girafa e uma tartaruga, é um desenho.”
Pediram-me de imediato a identificação. Dias depois, recebi uma notificação judicial por danos ao património público. Contestei por escrito: o que fiz foi uma inscrição visual, sem destruição, apropriação ou dano. O que se revelou mais significativo não foi apenas a desproporção da penalização, mas a forma como a acção foi imediatamente qualificada como infracção. A autoridade respondeu por automatismo punitivo, sem qualquer consideração pelo contexto ou pela intencionalidade da acção.
2. Condicionamento Pavloviano e Desvio Comportamental
A resposta dos agentes corresponde, do ponto de vista comportamental, a um processo de condicionamento clássico, tal como definido por Ivan Pavlov. Neste modelo, um estímulo inicialmente neutro passa a desencadear uma resposta específica após associação repetida com uma consequência. A resposta é reflexa e não é mediada por interpretação nem por juízo.
Neste caso, o comportamento observado — fazer um desenho — foi interpretado como desvio comportamental e activou uma resposta punitiva imediata. A associação foi directa: marca visível → sanção administrativa → inibição futura da conduta. Trata-se de um reforço negativo, em que se introduz um estímulo aversivo com o objectivo de eliminar uma acção não autorizada.
Esta resposta não foi fundamentada numa análise situada, mas activada por automatismo punitivo. O sistema não procurou compreender o acto, nem contextualizá-lo. Apenas reconheceu um elemento visível fora da norma e aplicou a penalização prevista. A acção simbólica foi reduzida a sinal de infracção.
O sujeito não foi reconhecido como agente com intencionalidade e responsabilidade moral, mas tratado como corpo a normalizar. A penalização teve uma função dissuasora. Visou interromper a acção pela via do condicionamento.
Este modelo de actuação produz efeitos concretos sobre a experiência do espaço público: inibe práticas expressivas não autorizadas, reforça a autocensura e substitui o juízo pelo medo. A imagem torna-se suficiente para activar um mecanismo de controlo, dispensando qualquer interpretação. O pensamento é excluído do processo.
3. Poder como Relação, Autoridade como Reconhecimento
Para compreender este tipo de resposta institucional, é necessário distinguir poder de autoridade. Michel Foucault demonstrou que o poder moderno não actua apenas por repressão, mas através de dispositivos que codificam e regulam a conduta. Confesso que mais tarde gostaria de escrever sobre expressões e extruturas de poder contemporâneo, deixo a nota. Para Foucault o controlo opera através de micropráticas que tornam determinados comportamentos inviáveis ou indesejáveis.
Raven identifica diversos tipos de poder: coercivo (ameaça), de recompensa, legítimo (função), de referência, pericial e informacional. No episódio relatado, a actuação baseou-se exclusivamente no poder coercivo e legítimo. Não houve leitura crítica da ação— apenas a ativação de um protocolo a ser seguido.
Agora, sobre autoridade- gostava de mecionar sussintamente as prepetivas que vão ao encontro do meu pensamento: Kelchtermans propõe o conceito de autoridade relacional, construída com base na confiança, na consistência e na responsabilidade moral. Arendt distingue autoridade de força: a autoridade funda-se no reconhecimento da legitimidade, e não na imposição. É este modelo de autoridade, não-delegada, que está ausente do tipo de actuação aqui analisado. A autoridade do policia que era delegada pelo estado, era apenas executiva. A delegação institucional de permissão para exercer sanções a quem não cumpre a normas jurídicas pode potenciar, a quem exerce esta profissão- a de executar a lei- uma falsa sensação de autoridade e uma falsa sensação de poder.
4. Capital Simbólico e Reconhecimento (Bourdieu)
Segundo Pierre Bourdieu, o reconhecimento de uma prática como legítima depende da posição simbólica do agente dentro de um campo específico. No momento do acontecimento, eu não detinha o capital simbólico necessário para que a acção fosse lida como intervenção autorizada. O que foi sancionado não foi o conteúdo do acto, mas a ausência de legitimidade atribuída à figura que o praticou.
Ao classificar o gesto como vandalismo, a instituição impôs um regime de leitura que desactivou qualquer possibilidade de interpretação. A sansão judicial assim como a linguagem jurídica funcionaram como instrumentos de desqualificação simbólica. Nomear não é apenas descrever — é atribuir valor. A classificação produz consequências reais.
5. Sobre Autoridade: Inscrição, Responsabilidade e Pensamento
A autoridade que reivindico não se baseia na função nem na delegação institucional. É uma autoridade autoral (parece redundante, eu sei), fundada na acção situada, na produção de sentido e na responsabilidade moral sobre o que se inscreve no mundo. Não depende de estatuto, mas de coerência entre pensamento e presença e acção.
Rancière propõe que o verdadeiro acto pedagógico é aquele que emancipa. Freire e hooks defendem que a acção educativa não deve domesticar, mas transformar. A autoridade legítima não se impõe — exerce-se na relação, ao ouvir o outro e na persistência do pensamento.
6. Entre Pavlov e Arendt
O episódio aqui em análise evidencia uma estrutura de poder que opera por automatismo condicionado, em que a resposta institucional se organiza segundo uma lógica pavloviana: o gesto é interpretado como estímulo, a penalização aplicada como resposta e o efeito pretendido é a inibição do comportamento. Esta dinâmica revela uma concepção mecânica da acção educativa, em que o sujeito é reduzido a um sistema reactivo, susceptível de ser moldado por reforço negativo. A função normativa sobrepõe-se, assim, à mediação simbólica, produzindo efeitos de silenciamento e exclusão. O problema central não reside apenas na rigidez do dispositivo disciplinar, mas na suspensão da faculdade de julgar que deveria sustentar a responsividade institucional.
Hannah Arendt (1963), ao analisar o fenómeno da banalidade do mal, afirma que o mal extremo não decorre do ódio nem de motivações perversas, mas da suspensão do pensamento — da renúncia ao exercício do juízo crítico. Quando os agentes das instituições educativas se limitam a aplicar normas de forma indiferenciada, sem discriminação contextual nem análise da intencionalidade subjacente à acção, deixam de reconhecer o sujeito enquanto outro moral. A norma transforma-se em fim em si mesma, e a singularidade do gesto é dissolvida na infracção que representa. A relação pedagógica, nesse quadro, é substituída por uma lógica de controlo funcional.
Neste contexto, a autoridade deixa de operar como reconhecimento da alteridade e passa a exercer-se como automatismo regulador. Em vez de promover a construção de vínculos educativos, o sistema actua para neutralizar comportamentos que divergem da norma, ainda que estes sejam expressões legítimas de agência simbólica. O que se perde é a possibilidade de compreender a acção enquanto manifestação situada de pensamento e posicionamento moral. A resposta institucional torna-se, assim, desumanizante — não por ser disciplinar em si mesma, mas por ser indiferente à complexidade da situação concreta.
Este tipo de funcionamento é sintomático do que Arendt identifica como falência do juízo: a substituição do pensamento pela obediência cega à estrutura normativa, mesmo quando esta entra em contradição com os princípios morais que a legitimam. A desumanização funcional emerge, então, como efeito colateral da burocratização da acção educativa. O poder institucional torna-se particularmente perigoso não quando intervém disciplinarmente de forma crítica, mas quando o faz de modo automático e acrítico, anulando a possibilidade de reconhecer, na acção do outro, um apelo ao pensamento em conjunto, à diplomacia, ao vínculo e à compreensão.
7. Nomear as Estruturas: Silenciamento, Abuso e Responsabilidade
A sanção aplicada não puniu um desvio comportamental mas sim o facto de eu, enquanto ser humano ter coerência interna e extrutura de pensamento própria e complexa e agir em consonância com isso mesmo. Esta punição foi obviamente um efeito previsível de uma estrutura que opera por exclusão e automatismo. Judith Butler demonstra que as estruturas de silenciamento dependem da sua não nomeação para se manterem operativas; torná-las visíveis através da linguagem constitui, por si só, uma acção de desestabilização do seu funcionamento. A importância deste artigo, não é justificar o meu acto de inscrição mas sim nomear as consequências da delegação da autoridade institucional, e da execução de poder judicial sem critério.
Segundo Ahmed quem denuncia práticas abusivas nas instituições tende a ser tratado como elemento perturbador. O sujeito que nomeia torna-se ele próprio alvo de controlo simbólico. Denunciar a violência estrutural implica enfrentar a inversão da responsabilidade. Com base no capital simbólico e relacional que construí estou agora numa posição que me permite nomear realidade. É importante aqui, pensar nos sujeitos que não têm ferramentas para nomear a própria realidade e acabam por ser condicionados através de um método pavloviano. Ainda importante mencionar: segundo Bourdieu nomear é distribuir legitimidade. A linguagem que qualifica um gesto determina os seus efeitos. Ao nomear uma inscrição como vandalismo, a instituição anulou a possibilidade de reconhecimento simbólico. A leitura foi substituída por protocolo. A questão fundamental aqui é: Até quando vamos permitir que a anulação simbólica do sujeito seja efetuada através de um condicionamento pavloviano?