Chikki 101: Sobre Performance Política

Entre a Consciência e o Espetáculo: A Performance Política na Sociabilidade Contemporânea

Este artigo propõe uma análise crítica da performatividade política como fenómeno emergente nas sociabilidades contemporâneas, em particular no contexto da juventude urbana com acesso a meios de expressão digital. Ao observar manifestações de posicionamentos políticos desprovidos de elaboração conceptual, mas sustentadas por impulsos identitários e dinâmicas de grupo, procura-se compreender os riscos da politização superficial e da redução do discurso crítico a um gesto performativo. Defende-se que a política, enquanto prática transformadora, exige interioridade, elaboração e consequência — não apenas visibilidade.

1. O paradoxo da visibilidade ideológica

Hoje em dia, os posicionamentos políticos são frequentemente visíveis, mas raramente consistentes. A exteriorização do posicionamento político tornou-se uma prática quotidiana, incentivada por estruturas algorítmicas que recompensam a intensidade, a indignação e a identidade — mais do que a profundidade, o rigor ou a consequência. Este cenário tem gerado um fenómeno que denominamos performatização política: a adopção de discursos, gestos e símbolos ideológicos sem interiorização crítica ou prática concreta.

2. A política como identidade emocional

A primeira consequência desta tendência é a possibilidade de transformar a política num dispositivo de afirmação identitária. Ser “de esquerda”, “feminista”, “anti-racista” ou “anti-sistema” torna-se um marcador estético-comportamental, muitas vezes desconectado da ação política transformadora. A posição política deixa de ser uma síntese entre pensamento, afecto e ação, e passa a ser um marcador social, reconhecido pelo grupo como prova de pertença.

Muitos dos assuntos são abordados de forma superficial por indivíduos em lugares de fala privilegiados como forma de pertença e performance identitária. Este tipo de politização afetiva e superficial encontra terreno fértil em contextos em que o sofrimento identitário é legítimo mas frequentemente instrumentalizado em lógicas de pertença, e onde a estrutura de pensamento crítico está ausente ou em formação. A falta de leitura e de elaboração teórica é substituída por palavras-chave, reações automáticas e reciclagem retórica de fragmentos sociais.

3. A performatividade como fuga da interioridade

Falar continuamente, indignar-se compulsivamente, reagir publicamente a qualquer sinal de injustiça — tudo isto aparenta politização mas carece de densidade crítica. Muitas vezes, trata-se apenas de uma forma de evitar o confronto com a própria fragilidade. A expressão política sem pausa pode funcionar como um mecanismo de defesa emocional: a política não como meio de transformação do mundo, mas como proteção contra o vazio interior.

“Não se trata de mudar o mundo, mas de evitar o confronto consigo mesmo.”

4. Consequências sociais e epistemológicas

A performatividade política produz efeitos não só na esfera individual, mas também no campo colectivo:

I- Descredibilização da crítica: ao tornar-se superficial, a crítica política perde força argumentativa e transforma-se num estereótipo depreciativo frequentemente associado a figuras públicas juvenis que expressam indignação sem articulação argumentativa.

II- Armas para os adversários: a direita populista e os discursos conservadores usam estas manifestações desarticuladas para deslegitimar causas fundamentais.

III- Rutura entre forma e conteúdo: quando a expressão não é acompanhada de reflexão, a política converte-se em pseudo moralismo impulsivo que serve mais a validação narcísica do sujeito do que a construção de sentido colectivo.

5. Da performance à práxis: o desafio moral

Reivindicar a política como prática implica rejeitar a estetização do posicionamento ideológico. Isso exige silêncio, reflexão, estudo, elaboração, e sobretudo responsabilidade. Não basta “estar do lado certo da história” — é necessário agir com consequência, pensar com rigor e expor-se à vulnerabilidade de não saber.

A politização verdadeira é inseparável de uma estrutura de pensamento, de uma disponibilidade afectiva para o outro, e de um compromisso com a transformação — mesmo que silenciosa, mesmo sem estruturas externas de apoio suficientes.

Poderíamos aqui recuperar Arendt, que defende que o pensamento político nasce do juízo, e que o juízo requer tempo, suspensão e responsabilidade moral. Também Bourdieu adverte que os automatismos sociais inibem o pensamento, tornando necessária a suspensão crítica como condição da acção política significativa.

6. O lugar da palavra política

Este artigo não é um ataque à juventude militante nem uma defesa da neutralidade apolítica. É um apelo à reconquista da profundidade, à honestidade intelectual e à recusa da fala automática. O pensamento político tem origem na ferida — mas só se transforma em ação quando passa pelo crivo do silêncio, da reflexão e, sendo consequente, da acção.

Falar não basta. Reagir não basta. Ser “contra” não basta. O gesto político começa quando a fala vem do lugar onde já houve pensamento, e o pensamento do lugar onde já houve mundo.

7. Quando a indignação substitui o pensamento: ausência de elaboração e falha pedagógica

O que se observa em muitas interações politizadas nos contextos contemporâneos — especialmente nas redes sociais e entre jovens urbanos com acesso a conteúdo informativo digital — não é ausência de opinião, mas ausência de reflexão durante o acto comunicativo. As ideias estão lá, os princípios estão alinhados com causas legítimas, mas falta-lhes elaboração no momento de ouvir e responder.

O problema não é o conteúdo em si — é a forma como ele é mobilizado sem processo reflexivo. Não se pensa enquanto se fala. Não se ouve para integrar. A conversa não é usada como espaço de construção, mas como momento de afirmação identitária.

Este padrão revela-se de forma particularmente clara quando observamos a apropriação reativa de conteúdos: alguém lê um post com conteúdo político durante a manhã e, horas depois, utiliza o mesmo texto como base para iniciar um confronto com alguém com ideias opostas. O conteúdo é acionado como arma retórica, sem mediação crítica, sem adaptação contextual, e sem qualquer esforço de relação entre ideia e realidade.

Trata-se de um uso instrumental da informação que visa reforçar a identidade do sujeito enquanto "politicamente consciente", mas que não contribui para educar a sociedade nem para transformar a situação concreta. O discurso torna-se um gesto fechado sobre si mesmo, destinado a confirmar uma posição — não a intervir sobre o outro, nem sobre o mundo.

Este tipo de comportamento não é apenas improdutivo — é ofensivo para quem trabalha com educação, formação e pedagogia crítica. Porque desfigura o processo educativo, transformando-o num espetáculo de reatividade emocional desprovido de elaboração. Ignora a complexidade das relações humanas e substitui a construção de pensamento por uma sucessão de reações automáticas. Desvaloriza o trabalho diário e contínuo de quem se dedica a criar espaços onde o pensamento pode emergir com verdade, validade, cuidado e consequência.

A ação política exige mais do que indignação. Exige estrutura, persistência, disposição para estar em relação com o mundo, mediação e responsabilidade. Criar estruturas externas de apoio — sejam redes de solidariedade, práticas de literacia política, vínculos pedagógicos consistentes — implica mais do que reagir: implica comprometer-se com a construção de uma realidade comum.

Nomear a realidade é um gesto de cuidado que implica uma reflexão profunda sobre si e sobre o mundo. Uma ideologia não é uma performance identitária para quem está num estágio de desenvolvimento identitário precoce e procura identidade através da pertença a um grupo. Uma opinião política exige compromisso com o que se pensa, o que se diz e o que se faz. Mais do que isso, exige verdade: procurar a validade da informação, perceber de que forma nos faz sentido e o que nos é exigido por ela.

É importante perceber que o nosso posicionamento político não é um clube de futebol. Um posicionamento político pressupõe tempo, compromisso e disposição para rever os próprios limites. Exige pensar com os outros — não apenas reagir a partir de si. Uma opinião política não é uma desculpa para performar uma catarse emocional contra o outro.A política, enquanto práxis, exige mais do que pertença simbólica. Deixo também em atenção: a ideologia política é um espectro, não uma estrutura binária.  

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