Chikki 101- Sobre Okupa Virtual e Lobotomia Digital

Okupa Virtual: Contra a Colonização Algorítmica da Cognição Humana

Este artigo analisa o espaço digital como um campo de disputa simbólica e cognitiva. Argumenta-se que a lógica algorítmica das plataformas digitais promove um modelo de consumo baseado em reacção imediata e baixa exigência interpretativa. Define-se este fenómeno como colonização algorítmica da cognição humana. Introduzem-se dois conceitos originais: lobotomia digital, que descreve o impacto cognitivo dos conteúdos de entretenimento optimizados para retenção, e okupa virtual, que designa espaços de resistância simbólica criados dentro das próprias plataformas. Apresentam-se dois casos empíricos: o episódio Toywar (1999) e a conta @chikki_yeah, desenvolvida como extensão da prática.

1. Introdução

 As plataformas digitais estruturam actualmente o acesso à linguagem, à visibilidade e à experiência simbólica. A selecção de conteúdos é regulada por algoritmos que favorecem elementos de apelo emocional, simplicidade narrativa e repetição visual. Isto afecta directamente os processos cognitivos dos utilizadores.

Que tipo de conteúdo é promovido? Nos reels, nos shorts e em outras formas de vídeo breve, observa-se a prevalência de material centrado no entretenimento leve e com baixa complexidade simbólica. Alguns destes conteúdos são politicamente performativos, mas não apresentam a origem das fontes ou dados que permitam comprovar a validade das afirmações. Estes conteúdos moldam padrões de percepção e reacção que têm impacto sobre o funcionamento cognitivo e relacional dos sujeitos.

Define-se este processo como colonização algorítmica da cognição humana. Esta ocorre quando os mecanismos de selecção e recomendação de conteúdo condicionam a organização da atenção, da memória e da inferência. Em resposta, propõem-se dois conceitos: lobotomia digital e okupa virtual, com base na análise de dois casos.

2. Lobotomia Digital

O conceito de lobotomia digital, que proponho neste trabalho, é uma formulação original desenvolvida com base na observação de práticas digitais actuais e na análise interdisciplinar dos seus efeitos sobre os processos cognitivos e educativos. Refere-se à alteração sistemática das funções cognitivas provocada pela exposição prolongada a conteúdos digitais optimizados para reacções automáticas e afectivamente recompensadoras. Estes conteúdos, geralmente curtos, repetitivos, de estrutura narrativa simplificada e com forte apelo sensorial, são promovidos por sistemas algorítmicos cuja função é maximizar o tempo de permanência do utilizador nas plataformas.

Do ponto de vista neurobiológico, a exposição continua a estímulos com elevada frequência e intensidade emocional activa preferencialmente os circuitos dopaminérgicos do sistema mesolímbico. Como consta em trabalhos de Robert Sapolsky (2017), esta forma de activação promove respostas rápidas orientadas para a recompensa, em detrimento da activação do córtex pré-frontal dorsolateral, estrutura responsável por funções executivas como planeamento, inibição de impulsos, resolução de problemas e deliberação moral. A consequência directa é uma diminuição da capacidade de manter atenção prolongada, de sustentar raciocínios complexos e de processar informação ambígua ou contraditória.

Estas alterações afectam directamente a função "educativa". Paulo Freire (1996) defende que a construção da consciência crítica depende da mediação simbólica e da articulação entre experiência, linguagem e interpretação. A pedagogia crítica exige tempo, esforço e conflito cognitivo. Os conteúdos que predominam nas plataformas digitais, ao favorecerem gratificação imediata e baixa exigência interpretativa, inibem estas competências e reforçam formas de consumo repetitivo e acrítico.

No plano da filosofia da acção, Hannah Arendt (1958) argumenta que a acção humana se define pela capacidade de iniciar algo novo num espaço comum, de agir deliberadamente e com responsabilidade perante os outros. Quando os sujeitos estão sistematicamente expostos a estímulos que desencadeiam reacções previsíveis, essa capacidade é comprometida. A exposição constante a conteúdos estruturados para provocar resposta e não reflexão enfraquece a agência individual e a possibilidade de intervenção crítica sobre a realidade.

A partir da análise foucaultiana do poder (1975), a lobotomia digital pode ser compreendida como uma tecnologia contemporânea de normalização. Não opera por proibição directa, mas por filtragem algorítmica. Os conteúdos que se tornam visíveis são os que reforçam padrões afectivos e comportamentais previsíveis. A repetição, a simplificação e a gratificação emocional imediata tornam-se instrumentos de regulação dos modos de pensar. O sujeito é conformado pela organização estrutural do que é possível ver, sentir e repetir.

Considero, assim, que a lobotomia digital como uma consequência da forma como operam as plataformas digitais dominantes. O objectivo destas estruturas é garantir retenção, previsibilidade comportamental e adesão afectiva a um modelo de consumo contínuo. A produção de sujeitos dóceis, não reativos e intelectualmente dependentes é coerente com os interesses das empresas que estruturam o espaço digital.

A lobotomia digital actua como mecanismo de docilização ao reorganizar os processos cognitivos em função da reacção automática e não da interpretação. Este processo não depende da coerção directa, mas da repetição controlada de estímulos afectivamente atractivos e cognitivamente empobrecidos. A sua eficácia reside precisamente na ausência de resistência visível: parece inofensiva, mas compromete a autonomia do pensamento.

Este é um conceito que continuo a desenvolver no cruzamento entre neurociência, teoria crítica, filosofia da educação e análise da comunicação digital. Entendo-o como ferramenta analítica para identificar e intervir sobre os modos como o espaço virtual afeta a cognição, limita a acção e fragiliza a capacidade de agência crítica dos sujeitos.

3. Okupa Virtual

O conceito de okupa virtual, proposto neste trabalho, refere-se à apropriação intencional de segmentos do espaço digital com o objectivo de contrariar a lógica dominante das plataformas. À semelhança das okupas urbanas, que intervêm sobre espaços físicos inactivos ou privatizados, a okupa virtual actua sobre infraestruturas digitais já em funcionamento, utilizando os seus próprios mecanismos de visibilidade e distribuição para fins não-alinhados com a lógica algorítmica hegemónica.

A okupa virtual não recusa a utilização das plataformas digitais, mas recusa os fins a que estas normalmente servem. Opera com os recursos da própria plataforma — visibilidade, formato, estética, distribuição — mas orientada para finalidades divergentes: promover pensamento, introduzir desaceleração, criar ambiguidade e permitir conflito interpretativo. A sua função é restituir espaço simbólico à acção cognitiva e ao dissenso, contrariando a tendência dominante para a repetição automática e a simplificação afectiva.

A permanência no espaço virtual não é, neste contexto, um sinal de conformidade. Pelo contrário, a recusa em ocupar esse espaço é um erro estratégico. O não-uso não suspende os efeitos da lobotomia digital, apenas os deixa decorrer sem resistência. Quando o espaço simbólico é abandonado por sujeitos autónomos e críticos, ele é automaticamente preenchido por agentes que operam segundo lógicas comerciais e de controlo da atenção.

Assim, negar que a ocupação do espaço virtual é necessária equivale a abdicar do poder de intervir sobre os modos como o pensamento é estruturado na contemporaneidade. Ter uma conta numa plataforma não significa alinhar com o seu funcionamento dominante, mas pode significar reorientar o uso que se faz dessa conta para fins pedagógicos, críticos ou epistemologicamente consistentes.

A okupa virtual é, portanto, uma forma de acção simbólica situada, que utiliza os meios disponíveis para reintroduzir mediação, interrupção e reflexão num espaço progressivamente formatado para o consumo reactivo. Trata-se de uma estratégia concreta de resistência à lobotomia digital enquanto reorganização funcional da cognição colectiva ao serviço de interesses económicos.

Este conceito está em desenvolvimento e será aprofundado em articulação com práticas autoetnográficas e observação crítica da minha presença digital enquanto professora e artista. A proposta central é que a ocupação activa e consciente do espaço virtual é uma forma legítima — e necessária — de agir pedagogicamente sobre a cultura digital contemporânea.

4. Toywar

O caso Toywar, ocorrido em 1999, constitui um exemplo paradigmático da ocupação crítica do espaço digital a partir de dentro das suas próprias infraestruturas. A disputa teve origem entre o colectivo artístico europeu etoy e a empresa norte-americana eToys.com, uma retalhista online de brinquedos que, à data, se preparava para entrar na bolsa de valores NASDAQ.

A empresa eToys.com exigiu judicialmente a transferência do domínio etoy.com, que já estava registado e activamente utilizado pelo colectivo artístico desde 1995. A justificação da empresa baseava-se na alegada confusão entre os nomes e na potencial interferência do projecto artístico com os interesses comerciais da marca. Em resposta, o colectivo etoy recusou ceder o domínio e activou uma rede internacional de resistência simbólica. Através de uma campanha mediática e digital que incluiu o uso intensivo de mailing lists, fóruns e intervenções gráficas, etoy mobilizou artistas, activistas e utilizadores da Internet para denunciar o caso como tentativa de privatização ilegítima de espaço simbólico comum.

O domínio etoy.com foi então transformado intencionalmente num espaço de dissenso. A sua página passou a incluir imagens críticas, documentação do processo legal e conteúdos que parodiavam a lógica comercial e institucional da empresa que pretendia adquirir o domínio. Este gesto não consistiu numa recusa do digital, mas na apropriação estratégica dos seus mecanismos: visibilidade, redireccionamento, acção em rede.

Do ponto de vista analítico, Toywar demonstra que o espaço virtual é também espaço político e território simbólico, sujeito a disputas de posse, uso e significado. A acção do colectivo etoy constitui uma forma exemplar de okupa virtual, pois intervém sobre um segmento do sistema digital hegemónico não para destruí-lo, mas para desviar o seu uso, expondo as suas lógicas de poder e os seus mecanismos de exclusão.

Este caso permite compreender que a resistência digital não depende da criação de infraestruturas autónomas — embora essa seja uma possibilidade —, mas pode ocorrer no interior da própria lógica algorítmica, desde que acompanhada de um posicionamento crítico e uma orientação consciente para fins não-alinhados com a normalização técnica e comercial.

Neste sentido, o caso Toywar é relevante para pensar a pedagogia como intervenção simbólica no espaço digital contemporâneo. Tal como no ensino se disputa o sentido do que é legítimo saber, também no espaço virtual se disputa o que é visível, legítimo e circulável. A presença crítica num espaço hegemonicamente desenhado para a rentabilização da atenção pode constituir, tal como demonstrado neste caso, uma forma activa de resistência cognitiva.

5. @chikki_yeah como okupa virtual

A conta @chikki_yeah constitui um exemplo de okupa virtual orientada para a resistência simbólica à lógica dominante das plataformas digitais. Criada no contexto de uma prática artística centrada na acção crítica e na produção de pensamento, esta presença online não visa a autoexpressão, o entretenimento nem a adesão algorítmica. O seu objectivo é ocupar estrategicamente o espaço digital antes que este seja totalmente hegemonizado por estruturas que promovem a lobotomia digital.

A presença em plataformas como o Instagram é entendida como um acto político e cognitivo. Em vez de rejeitar o meio, a conta utiliza os seus próprios formatos — vídeos curtos, linguagem visual apelativa, referências culturais populares — para mimetizar criticamente a lógica algorítmica. Este mimetismo tem como finalidade a exposição dos mecanismos de manipulação perceptiva, afectiva e cognitiva que estruturam o espaço virtual.

A conta introduz elementos de tensão cognitiva: conteúdos que interrompem o consumo automático, obrigam à desaceleração e instalam conflito interpretativo. Ao contrariar os modelos de previsibilidade e dopamina instantânea promovidos pelos algoritmos, @chikki_yeah actua como um ponto de desvio dentro do sistema, desestabilizando os circuitos de atenção normativos.

O tempo que os utilizadores dedicam a estes conteúdos é tempo subtraído à lógica da repetição passiva. Trata-se de um espaço de interrupção, não de consolidação identitária. A estratégia é de infiltração e reorientação, não de conformação. O uso da plataforma é instrumental: opera por dentro para resistir à normatização cognitiva que lhe é estrutural.

Esta prática inscreve-se numa concepção mais ampla de acção simbólica consciente. O espaço virtual, tal como o espaço físico, é um território disputado. Não ocupá-lo é permitir que ele seja exclusivamente instrumentalizado por entidades comerciais e interesses privados orientados para a docilização do pensamento. A conta @chikki_yeah é, nesse sentido, uma resposta prática ao diagnóstico da lobotomia digital: não um projecto de auto-representação, mas uma intervenção orientada para a criação de pequenas rupturas nos circuitos dominantes de atenção, linguagem e percepção.

 A estrutura das plataformas digitais afecta os processos de cognição e a formação simbólica dos sujeitos. A lobotomia digital descreve o impacto de conteúdos cuja função principal é a excitação afectiva com baixa elaboração cognitiva. A okupa virtual é uma estratégia de resistência que opera dentro dessas mesmas estruturas.

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