Chikki 101- Sobre a Banalidade do Mal nas Sociedades Contemporâneas

A Banalidade do Mal nas Sociedades Contemporâneas: O Atentado à Dignidade da Vida como Sintoma do Colapso Ocidental

1. Ciclos Pré-Guerra: Padrões Históricos, Repetição e Indícios de Um Novo Conflito Global

As grandes guerras do século XX foram precedidas por períodos de instabilidade social, colapso económico, polarização política e desintegração da autoridade pública. Estes sintomas foram construídos gradualmente a partir de falências acumuladas. O presente ensaio defende que vivemos hoje um novo ciclo pré-guerra, em que múltiplos sinais estruturais e simbólicos de colapso estão novamente ativos — tal como estiveram nas décadas que antecederam a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais.

A crise económica global iniciada em 2008, com a falência do Lehman Brothers e o colapso dos sistemas financeiros baseados em dívida especulativa, é um marco incontornável deste novo ciclo. Essa crise expôs a fragilidade estrutural do capitalismo financeiro e revelou o esgotamento do modelo neoliberal de organização social. As medidas de “austeridade” impostas a seguir provocaram o desmantelamento de serviços públicos, o empobrecimento da classe média, o precarizar generalizado da juventude e a exclusão crescente de populações vulneráveis. Esta instabilidade foi agravada por outras perturbações globais: a crise sanitária provocada pela pandemia de COVID-19, o colapso logístico e energético agravado pela guerra na Ucrânia, e os efeitos já visíveis da emergência climática.

Historicamente, a combinação entre crise económica, ressentimento populacional, desconfiança institucional e polarização ideológica funcionou como terreno fértil para regimes autoritários e mobilizações nacionalistas. O colapso de 1929, por exemplo, não apenas destruiu economias locais, mas produziu uma radicalização do espaço político, facilitando a ascensão do fascismo em Itália, do nazismo na Alemanha, da guerra civil em Espanha e do militarismo no Japão. Estes movimentos emergiram como respostas emocionais a um sentimento coletivo de humilhação, descontrolo e medo. A guerra tornou-se, então, o meio pelo qual se procurou restaurar a ordem através da destruição.

A Segunda Guerra Mundial foi consequência direta desse ciclo. A crise económica de 1929, a hiperinflação na Alemanha, a humilhação imposta pelo Tratado de Versalhes e a incapacidade da República de Weimar de estabilizar a economia criaram um terreno propício para o ressentimento nacionalista. A ascensão de Hitler foi possível porque a população, empobrecida e desorientada, procurava respostas simples para problemas complexos. A perseguição de minorias, o culto do líder, a repressão da esquerda e a glorificação do passado imperial funcionaram como dispositivos de reconfiguração identitária. A guerra foi apresentada como inevitável e até necessária — uma guerra moral, civilizacional, purificadora.

O paralelismo com o presente não pode ser ignorado. Assistimos a uma subida global de governos autoritários ou autocráticos que, embora formalmente eleitos, operam por redução da liberdade civil, desmantelamento de garantias constitucionais, e mobilização do ressentimento identitário. Em países como Hungria, Polónia, Turquia, Rússia, Índia, Brasil, Israel e, em certa medida, Estados Unidos, a linguagem política é marcada por polarização, purismo moral, culto da força e apelo à tradição. O outro — imigrante, progressista, pobre, queer, muçulmano, negro, feminista — é constantemente apresentado como ameaça interna. A legitimação da violência, seja policial, simbólica ou discursiva, é parte central deste modelo.

Um dos sintomas pré-guerra mais marcantes é a discrepância crescente entre direita e esquerda, acompanhada do esvaziamento do centro político. A direita radical expande-se, oferecendo respostas emocionais, punitivas e identitárias a uma população saturada de insegurança. A esquerda, por sua vez, apresenta-se frequentemente fragmentada, hesitante e incapaz de construir propostas mobilizadoras com efeitos reais no quotidiano. A linguagem política torna-se incomunicável entre campos. O desacordo não é apenas ideológico — é ontológico. A praxis política perde a sua função e passa a funcionar como sistema de antagonismo.

Estes fatores conjugados não só repetem os sinais do século XX, como se intensificam por meios tecnológicos mais rápidos, sistemas de vigilância mais eficazes e estruturas de segmentação populacional mais sofisticadas. Além disso, há já guerra em curso em várias frentes regionais, com potencial de alastramento: Ucrânia, Palestina, Taiwan, Sudão, Iémen. A multiplicação simultânea de focos de conflito, combinada com a ausência de mecanismos internacionais eficazes de mediação, constitui um cenário de pré-guerra global.

O sintoma mais grave e avançado desta nova configuração bélica é a normalização do genocídio. A destruição sistemática e deliberada de comunidades inteiras — como a população civil em Gaza, os Uigures na China ou as populações étnicas perseguidas em Myanmar — já não gera a mesma resposta pública ou institucional. Os regimes autoritários sabem que a mobilização internacional está paralisada por divisões geopolíticas, interesses económicos e relativismo moral. A banalidade do mal volta: através da gestão regular da exclusão, da morte e da indiferença.

Ao contrário do que sucedeu no pós-Holocausto — quando o horror do extermínio conduziu à criação de convenções internacionais, tribunais e estruturas de mediação global —, o sistema jurídico internacional perdeu capacidade de ação e de autoridade moral. As Nações Unidas são agem (inutilmente) por vetos sistemáticos, o Tribunal Penal Internacional é seletivo e vulnerável a pressões diplomáticas, e as potências ocidentais operam por duplo critério: mobilizam-se moralmente apenas quando lhes convém politicamente. A linguagem dos direitos humanos tornou-se instrumental — é invocada como argumento de poder, e não como princípio ético universal.

A imprensa global participa neste processo de normalização seletiva. Os conflitos são representados de acordo com lógicas geopolíticas, estéticas e morais filtradas por interesse. A morte de civis é coberta com indignação variável, consoante o contexto cultural ou a aliança diplomática. A opinião pública é condicionada por ciclos de visibilidade, e a indignação social tornou-se episódica, emocional e ineficaz. O genocídio já não é um ponto de rutura ética — é um assunto a ser discutido de forma diplomática a nível global.

Mais ainda, o genocídio começa a funcionar como instrumento de regulação da espécie humana a favor de governos autoritários Ele cumpre três funções estratégicas: 1) elimina fisicamente comunidades consideradas ameaças identitárias; 2) produz medo dirigido-se à população interna, reforçando a ideia de um inimigo a ser eliminado; 3) desafia abertamente os valores ocidentais, testando os limites da inação internacional. A impunidade repetida destes atos envia uma mensagem clara: a destruição pode ser feita, desde que disfarçada de operação de segurança, defesa nacional ou limpeza moral e desculpada através da linguagem utilizando eufemismos como a palavra “conflito”. Dizer conflito israelo-palestiniano é o equivalente a dizer “ limpeza étnica”.

O genocídio contemporâneo não se apresenta com retórica eufemística apenas — apresenta-se com justificação técnica, jurídica e mediática. Fala-se em "cirurgias militares", "operações de contra-insurgência", "proteção da integridade nacional", "erradicação do extremismo". A linguagem da morte é gerida como política pública. E o silêncio internacional não é omissão: é conivência funcional.

Por tudo isto, já não se trata de prever se haverá uma Terceira Guerra Mundial — trata-se de reconhecer que um novo conflito global já está em curso, ainda que sob formas fragmentadas, seletivas e administradas. O que o caracteriza não é (ainda) o confronto direto entre blocos militares, mas a instalação de uma política da morte, justificada institucionalmente e integrada nos mecanismos regulares de governação. A guerra não é anunciada — ela decorre diariamente pela normalização do extermínio, pela estratégias de lobotomização virtual que paralisam o pensamento, e sobretudo pelo abandono da dignidade da vida como critério absoluto de ação política.

Este atentado à dignidade da vida — à vida como valor em si, e não como função económica, identidade útil ou corpo produtivo — constitui o colapso terminal da sociedade ocidental contemporânea. Ao renunciar à ideia de que cada vida tem valor intrínseco, a ordem simbólica do Ocidente implode. A linguagem dos direitos humanos torna-se ou é finalmente exposta como uma retórica vazia. A política transforma-se em gestão da morte.

2. O Colapso Humano da Sociedade Ocidental Contemporânea

O que colapsa hoje nas sociedades ocidentais não é um modelo que alguma vez tenha garantido igualdade substantiva ou respeito incondicional pela vida humana. O que colapsa é a estrutura simbólica que sustentava a ficção de universalismo moral, base da legitimação liberal do Ocidente moderno. A ordem ocidental nunca foi fundada na convivência enquanto princípio operativo — foi fundada na instrumentalização da diferença, na produção hierárquica da vida e na organização funcional da alteridade sob critérios de utilidade, produtividade e normalização. A diferença foi tolerada apenas na medida em que pôde ser administrada. Vamos pensar no que significa “PIB per capita”: a média da capacidade de produção humana. Não é uma medida da vida — é uma medida do quanto se pode extrair de uma vida. Reduz o ser humano à sua capacidade de produção tendo em conta o seu “ corpo” de trabalho, transforma a existência em unidade económica, converte a dignidade em rendimento.

A modernidade ocidental construiu-se sob o signo da razão instrumental: da regulação técnica da vida, da economia política da existência, da codificação do humano segundo categorias funcionais. A retórica dos direitos humanos, embora fundada após 1945 foi usada para proteger alguns corpos, enquanto se eliminavam outros por via jurídica, económica ou militar. A figura do “sujeito de direitos” sempre teve fronteiras raciais, sexuais, territoriais e comportamentais bem definidas. A dignidade humana foi proclamada como valor universal, mas aplicada de forma seletiva e estratégica.

O colapso humano a que hoje assistimos não é uma falência repentina, mas o ponto terminal de um processo histórico contínuo de desumanização regulada. A estrutura institucional do Ocidente — jurídica, económica, educativa, securitária — sempre operou com base na seleção da vida protegida e da vida descartável. O que agora se torna visível é apenas a falência total da linguagem que justificava este sistema: já não se tenta justificar a violência — ela é administrada como normal.

Neste contexto, o genocídio contemporâneo aparece como extensão coerente da lógica que hierarquiza vidas, distribui valor humano, e converte sujeitos em unidades de risco ou custo. O extermínio já não precisa de ser secreto ou negado: pode ser visível, desde que enquadrado numa narrativa que o torne admissível.

A sociedade ocidental contemporânea não colapsa porque perdeu um ideal de pluralidade — colapsa porque revela que nunca o teve. O que falha é a possibilidade de continuar a mascarar a violência estrutural com discursos de inclusão. A gestão da morte tornou-se explícita.

3. Julgamento Moral, Transferência de Culpa e Construção do Inimigo

Nos momentos de colapso simbólico, quando a estrutura social já não oferece inteligibilidade nem eficácia aos sujeitos, estes tendem a reagir através de mecanismos de defesa simbólica. Quando os dispositivos de dominação, exclusão e violência se tornam demasiado opacos ou complexos para serem compreendidos — ou demasiado normalizados para serem reconhecidos como violência —, o sofrimento difuso é reinterpretado segundo categorias morais simplificadas: culpa, traição, corrupção, ameaça. A frustração coletiva, sem enquadramento crítico, é então redirecionada para alvos visíveis e simbolicamente vulneráveis. Trata-se de uma transferência social da culpa, que reorienta o mal-estar para sujeitos marginais, convertendo-os em corposonde se projeta o desespero de uma sociedade em colapso por crise de valor.

Este fenómeno não é novo. É recorrente nos ciclos históricos que antecederam guerras e colapsos civilizacionais, funcionando como mecanismo de reconfiguração simbólica do poder. Durante a República de Weimar, por exemplo, após a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha atravessava uma grave crise económica e identitária. A hiperinflação, o desemprego em massa e o Tratado de Versalhes criaram uma sensação coletiva de humilhação e perda de soberania. A resposta do nacional-socialismo foi oferecer uma explicação moral simplificada: os judeus, os comunistas e os liberais foram acusados de terem traído a nação. O inimigo foi fabricado dentro das fronteiras — e essa fabricação preparou, simbolicamente, o extermínio.

O mesmo padrão repete-se no Ruanda de 1994, onde o ressentimento histórico entre Tutsis e Hutus foi instrumentalizado por elites políticas para justificar o genocídio. A falência das estruturas políticas e económicas foi convertida, através de propaganda sistemática, numa narrativa moral de purificação nacional. A eliminação do outro foi apresentada como defesa legítima da pátria. Também na ex-Jugoslávia dos anos 90, a construção do inimigo étnico — croatas, bósnios ou sérvios, conforme o território — foi a base para a legitimação de massacres. Quando a crise deixa de ser pensada, passa a ser atribuída. Quando o sistema colapsa, o outro é responsabilizado.

Este processo não opera apenas como reação espontânea das massas — é ativado estrategicamente por sistemas de poder. A produção sistemática de inimigos internos — minorias étnicas, religiosas, sexuais ou ideológicas — serve para (1) canalizar a frustração coletiva para fora da estrutura de poder; (2) recompor a legitimidade de governos falidos através do medo e da punição; e (3) substituir a política pela vigilância moral.

Este mecanismo foi formulado de forma seminal por Hannah Arendt, no julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém. Arendt demonstrou que a violência genocida do regime nazi não nasceu do ódio individual, mas da obediência sem pensamento. Eichmann não era um monstro ideológico — era um burocrata. Agia sem convicção pessoal, mas com total conformidade à norma. A banalidade do mal é isto: não o prazer da crueldade, mas a suspensão do juízo. Violência está na interrupção do processo de pensamento gnosilogico- violência pode até certo ponto ser definida como automatismo.  A transformação da política em função administrativa, da vida em dossiê, da morte em expediente.

Segundo Arendt o mal não exige monstros — basta a abdicr do pensamento. Hoje, a substituição da análise crítica pela acusação moral é um sintoma alarmante. A linguagem pública, saturada de indignação performativa e identitarismo moralizante, já não articula conflito nem verdade — descarrega ressentimento e reproduz castigo simbólico. Em vez de pensar o sistema, demoniza-se o outro. Em vez de agir politicamente, moraliza-se. O outro deixa de ser sujeito — torna-se erro.

No Ocidente contemporâneo: migrantes, muçulmanos, beneficiários de apoios sociais, pessoas trans, ativistas climáticos — todos são transformados ciclicamente em símbolos de desordem, e apresentados como ameaça à estabilidade, à tradição, à economia ou à infância. A construção moral do inimigo é uma ferramenta política de altíssima eficácia, porque oferece o demónio projetivo, um culpado emocionalmente satisfatório.

Por tudo isto, o julgamento moral generalizado é um sintoma claro de fase pré-guerra. Ele precede sempre a legitimação da violência organizada. Quando a linguagem perde a capacidade de pensar o sistema e passa a organizar-se em torno da culpa, do castigo e da purificação, a sociedade entra em modo punitivo. E quando a linguagem se torna trincheira, o passo seguinte é a eliminação literal do inimigo simbólico.

A categorização social é o primeiro gesto simbólico da violência. Antes de alguém poder ser excluído, tem de ser nomeado como diferente; antes de ser punido, tem de ser identificado como desvio comportamnetal; antes de ser eliminado, tem de ser reduzido a uma categoria. É neste gesto de abstração que o outro deixa de ser uma pessoa concreta — e passa a ser uma função simbólica: o terrorista, o parasita, o degenerado, o inimigo, o subsidio-dependente, o problema. Este mecanismo é antigo: os Tutsis foram chamados de “baratas”, os judeus de “praga”, os imigrantes de “invasores”. A categorização social não reconhece a igualdade na diferença, mas produz agrupamentos simbólicos passíveis de punição coletiva. O genocídio não começa com armas — começa com palavras, com a fabricação do desvio comportamental, com o colapso do reconhecimento individual. A vida só é fácil de eliminar quando deixamos de ver pessoas e começamos a demonizar grupos com base no seu fenótipo.

4. A Linguagem como Campo de Guerra

A violência política não começa com o disparo de uma arma — começa com a palavra. A linguagem é o primeiro território ocupado nos regimes de exceção: é através dela que o inimigo é construído, que a diferença é convertida em ameaça, que o outro é preparado para ser eliminado. A guerra simbólica precede a guerra material. E essa guerra é travada nas escolas, nas redes sociais, nos jornais, nos parlamentos, nos discursos presidenciais. Quando a linguagem pública se torna trincheira moral e instrumento de exclusão, o campo de batalha já foi delineado — falta apenas ser ativado.

A linguagem não é neutra: é uma tecnologia de poder. Ela organiza o real, define os termos do possível e instrui os afetos sociais. A forma como falamos determina a forma como julgamos.

Historicamente, todos os regimes autoritários reconfiguraram a linguagem antes de institucionalizarem a violência física. O Terceiro Reich fez isso com a imprensa e a linguagem legal; o fascismo italiano com a retórica da pátria; o colonialismo com o léxico da missão civilizadora. Hoje, a linguagem da exclusão reaparece sob novas formas: “segurança”, “ordem pública”, “neutralidade institucional”, “valores da civilização”, “combate à radicalização”. Estes termos funcionam como frentes discursivas, que normalizam práticas repressivas e silenciam vozes dissonantes sob o pretexto da estabilidade.

A linguagem também é onde a banalidade do mal se naturaliza. A eliminação simbólica do outro acontece antes da eliminação física. E essa eliminação simbólica começa com o colapso da singularidade vocabular: todas as pessoas de um grupo são referidas da mesma forma, são substituíveis no discurso, tornadas equivalentes na ameaça. O vocabulário torna-se instrumento de gestão da indiferença. Ao nomear uma comunidade inteira como risco, remove-se dela a humanidade específica — e assim, torna-se mais fácil eliminá-la sem culpa. A linguagem converte o horror em operação. A morte em procedimento.

Nas sociedades ocidentais contemporâneas, este processo manifesta-se na forma como se fala dos pobres, dos migrantes, dos palestinianos, das pessoas queer, das periferias, dos corpos racializados. São todos referidos a partir de marcadores de desordem: “ilegais”, “ameaça demográfica”, “ideologia de género”, “extremismo”, “antissistema”. Não se descreve o que fazem — afirma-se o que são, como se o ser justificasse a exclusão. A identidade substitui o ato. E é esta substituição que autoriza o castigo antecipado.

A linguagem, assim, deixa de ser espaço de construção comum do mundo — passa a ser arma de guerra relacional. Quando o outro é descrito apenas em função da sua alteridade, e quando essa alteridade é codificada como risco, o conflito torna-se inevitável. O que se diz prepara o que se faz. O vocabulário delimita o campo ético, sim ético no sentido de se tratar da dignidade da vida e da dignidade da morte. E o extermínio simbólico precede sempre o extermínio real.

5. O Nojo, a Insula e a Banalidade Neurobiológica do Mal

A eliminação simbólica do outro não é apenas uma operação discursiva ou política — é também um processo neurocognitivo. O cérebro humano é sensível à construção de categorias sociais, e responde a essas construções com reações automáticas de aceitação ou repulsa. Robert Sapolsky, em Behave: The Biology of Humans at Our Best and Worst, mostra que o julgamento moral tem uma forte componente biológica, e que o nojo desempenha um papel central nesse processo. Quando alguém é percebido como “imoral” ou “fora da norma”, ativam-se as mesmas regiões cerebrais associadas à repulsa física, sobretudo a ínsula anterior, responsável por processar sensações como náusea e rejeição.

Este dado é triste e devastador: o cérebro reage ao “outro” “inimigo” como se reagisse a um cheiro pútrido ou a comida contaminada. Ou seja, a categorização moral torna-se uma sensação corporal — e não apenas um julgamento racional. Este tipo de resposta ocorre antes da reflexão consciente, e condiciona drasticamente a possibilidade de empatia, diálogo ou análise. A pessoa deixa de ser percebida como sujeito, e passa a ser sentida como ameaça visceral. Esta predisposição neurológica à rejeição é uma das bases da desumanização.

Hannah Arendt, ao teorizar a banalidade do mal, descreve o colapso da responsabilidade individual como condição para o genocídio burocrático. Eichmann não odiava os judeus — apenas os tratava como categorias administrativas. A sua ação violenta foi possível não por excesso de convicção, mas por ausência de pensamento. Arendt mostra que a abdicar do juízo ( aqui entendido como relação entre conceitos) torna a crueldade banal. Sapolsky ajuda-nos a perceber como a abdicação é facilitada por mecanismos automáticos do cérebro, que respondem ao “diferente” com repulsa e neutralizam o reconhecimento moral.

A complementaridade entre Arendt e Sapolsky é fulcral: o mal banal instala-se na combinação entre automatismo neurológico e automatismo institucional que permite que a violência se instale sem conflito interno. O sujeito já não precisa de justificar a exclusão — basta senti-la como justificada. É assim que o genocídio se torna admissível: não apenas porque o sistema o organiza, mas porque o cérebro já deixou de ver a vítima como igual.

Este processo explica por que razão a moral pública colapsa quando a linguagem institucional normaliza a exclusão: ao repetir insistentemente que um grupo é um problema, o discurso prepara o corpo para reagir com nojo. E esse nojo bloqueia os circuitos empáticos que permitiriam o reconhecimento. Quando a insula domina o córtex pré-frontal, a razão política cede à sensação visceral. A violência deixa de parecer uma escolha — passa ser uma defesa.

Neste sentido, o combate à banalidade do mal exige mais do que reformas legais ou campanhas públicas — exige reconfiguração simbólica e sensorial. A pedagogia crítica tem aqui um papel decisivo: ao restaurar a singularidade do outro, ao romper com categorias automáticas, ao criar experiências que obrigam o cérebro a ver, a pensar, a reconhecer — educa-se não só a consciência, mas também a percepção. Combater o mal banal exige desmontar o reflexo antes que se torne doutrina. E isso começa onde o pensamento e o corpo ainda se podem reorganizar: na linguagem, na escola, no vínculo humano.

6. Autoridade Crítica como Antídoto ao Autoritarismo

Se o autoritarismo é uma forma de poder que se instala pela obediência sem juízo, pela desresponsabilização moral e pela gestão da indiferença, então a autoridade não pode ser entendida como o seu oposto estrutural. O problema da autoridade não é haver alguém que oriente ou decida — o problema é haver sujeitos que são forçados a obedecer sem saber porquê, sem compreender os critérios, sem poder intervir no processo de decisão. A autoridade, para não degenerar em violência, tem de ser inteligível, legitimada e partilhável.

O poder, enquanto capacidade de influenciar o mundo ou a conduta de alguém, torna-se violência quando essa influência é exercida sem reconhecimento do outro anulando-o ou restringindo o sujeito. Nesse sentido, o autoritarismo é uma falha relacional: o outro não é incluído na relação de decisão, mas instrumentalizado como meio. A pedagogia crítica, especialmente na obra de Paulo Freire, propõe uma reconfiguração da autoridade: não como comando, mas como presença que mobiliza o pensamento e a ação do outro. A autoridade não se impõe — constrói-se na relação.

Freire distingue entre autoridade e autoritarismo para mostrar que educar exige liderança, mas nunca dominação. A autoridade crítica é aquela que se fundamenta na coerência entre discurso e ação, na abertura ao diálogo, e na disposição para aprender com o outro. É uma forma de presença que não anula o conflito, mas o acolhe como parte do processo de transformação. Ao contrário do autoritarismo, que silencia e uniformiza, a autoridade crítica estimula a divergência e responsabiliza todos os sujeitos pela construção do mundo.

A prática da autoridade crítica exige transparência na tomada de decisão, partilha de critérios, ouvir o outro ser o anular e disposição para ser interpelado. Mas mais do que uma técnica relacional, trata-se de uma ontologia política: a autoridade crítica afirma que ninguém é descartável, e que a construção do comum só é possível quando se reconhece a legitimidade da presença do outro. Trata-se de uma forma de poder que não coloniza — convoca. Que não elimina o erro — mas o pensa em conjunto. Que não administra — mas abre espaço para a ação consciente.

Esta definição alternativa de autoridade é incompatível com os dispositivos do autoritarismo contemporâneo: a vigilância, a homogeneização, a moral punitiva, o castigo simbólico. Onde esses dispositivos buscam obediência, a autoridade crítica busca responsabilidade partilhada. Onde eles impõem ordem, ela propõe sentido. Onde eles produzem medo, ela sustenta confiança crítica. Não há autoridade legítima onde há medo de existir.

Numa sociedade marcada pela regressão autoritária e pela degradação moral, o resgate da autoridade crítica é um gesto político radical. Significa reorganizar o vínculo social a partir da dignidade do outro, mesmo quando ele erra, diverge ou perturba. Significa substituir o automatismo do castigo pela inteligência do conflito. E significa afirmar que não há ordem possível sem justiça — e que não há justiça possível sem reconhecimento do outro como sujeito pleno de voz, pensamento e mundo.

7. A Arte e a Esquerda: Produção “Artística” Vs discursos de poder dominante.

Historicamente, os momentos de crise civilizacional foram acompanhados por um alargamento do abismo entre a produção artística e os discursos de poder dominante. Tanto na Primeira como na Segunda Guerra Mundial, a esmagadora maioria dos artistas, escritores, músicos e pensadores públicos se posicionou à esquerda, questionando a ordem estabelecida, denunciando o militarismo, o nacionalismo, a violência do Estado e os mecanismos de opressão social. Este padrão repete-se no presente: também hoje, a quase totalidade da produção artística contemporânea se alinha com ideais de esquerda no espectro politico binário.

Esta regularidade não é coincidência. A arte, enquanto atividade de construção simbólica e desorganização da norma, pressupõe uma relação crítica com o mundo. O artista não é alguém que confirma — é alguém que perturba. A linguagem artística não descreve a realidade dominante — torna visível o que o real dominante apaga. E isso torna a prática artística estruturalmente incompatível com sistemas autoritários, que exigem uniformidade simbólica e obediência narrativa. A criação é, por natureza, um gesto de insubordinação perceptiva. A partir do momento em que a utilidade do sujeito é ameaçada por uma prática ( ontológica) com base na estrutura interna e não na categorizarão social- o sujeito “artista” torna-se pernicioso na narrativa de poder dominante.

Durante a Primeira Guerra Mundial, movimentos como o Dadaísmo emergiram como respostas ao absurdo da lógica militar e à desumanização total da vida. A recusa da racionalidade, a colagem, a incoerência formal e a ironia não foram apenas experimentações estéticas — foram formas de sabotagem simbólica. Já na Segunda Guerra Mundial, inúmeros artistas foram perseguidos, exilados ou eliminados por regimes fascistas, que os viam como ameaças ideológicas. A arte moderna foi classificada pelo nazismo como “degenerada” (Entartete Kunst), e os artistas rotulados como entidades problemáticas a nível moral e social.

A repetição deste padrão sugere que a prática “artística” ou que queiramos chamar ao “fazer” (inserir um revirar de olhos)  resiste à codificação dominante da realidade. Quando a norma social se organiza em torno da exclusão, da ordem e da pureza, o artista opera como agente da fratura, da ambiguidade e da contaminação. Por isso, torna-se inimigo interno em todos os contextos de doutrina ideológica.  Pessoalmente odeio a palavra “arte” mas vou fazer um esforço porque considero importante falar sobre isto: arte aparece como campo de insubmissão. E por isso é combatida, neutralizada, ou ridicularizada — mesmo em democracias, ou melhor: especialmente em democracias.

Hoje, vemos novamente o artista a ser tratado como ameaça pública, acusado de ser woke, imoral, perturbador, antinacional, irresponsável. O que está em causa não é o conteúdo político explícito da obra — é a sua função estrutural de desordem. O artista aparece como o último agente do simbólico autónomo, num mundo cada vez mais capturado por algoritmos, slogans e campanhas coordenadas de desinformação. A sua simples existência crítica e imprevisível, torna-se insuportável para sistemas que já não toleram nem a complexidade nem a dúvida.

Por isso, o “artista” (inserir um revirar de olhos novamente) é sempre o primeiro a ser excluído, e o último a ser perdoado. A história da arte é, também, a história da sua perseguição. E em tempos de pré-guerra, este padrão repete-se com fidelidade trágica.

8. A Falência dos Direitos Humanos e o Colapso da Ficção Moral Ocidental

O Ocidente pós-guerra construiu a sua legitimidade política e simbólica em torno de uma promessa: a de que a dignidade da vida humana seria inviolável. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais foram apresentadas como provas de uma mudança civilizacional definitiva — a vida, dizia-se, já não poderia ser tratada como meio, mas apenas como fim. No entanto, a história recente demonstra que esta promessa era frágil, seletiva e dependente de equilíbrios geopolíticos que hoje se esgotaram.

No “nosso pequeno santuário” — a União Europeia —, os direitos humanos são cada vez mais instrumentalizados como retórica diplomática e cada vez menos aplicados como critério real de decisão política. A externalização das fronteiras para países como Líbia ou Turquia, onde os migrantes são submetidos a condições desumanas; a conivência com regimes autoritários quando há interesse económico ou energético; a militarização da política migratória; e o silêncio cúmplice perante genocídios em curso revelam que a vida deixou de ser um valor absoluto. Ela é, agora, um recurso político e económico a ser gerido.

Esta instrumentalização não é nova. A história do colonialismo europeu prova que a dignidade humana sempre foi aplicada de forma seletiva — para alguns, nunca para todos. O que mudou é que a hipocrisia perdeu a máscara. Se, no pós-guerra, a Europa ainda se esforçava por manter uma ficção de universalismo moral, hoje essa ficção está corroída por contradições internas: a crise dos refugiados, a ascensão da extrema-direita, o populismo e o desmantelamento dos serviços públicos expuseram a falência dessa narrativa.

A falência dos direitos humanos como dispositivo normativo não significa apenas o colapso de uma legislação — significa o colapso de uma imaginação política. Quando a vida humana deixa de ser reconhecida como fim, volta-se à lógica instrumental que marcou os períodos mais sombrios da história. Isto liga-se diretamente à banalidade do mal descrita por Arendt: a violência já não precisa de se justificar com ódio ou ideologia — basta a administração neutra de corpos que perderam o estatuto de sujeitos.

O genocídio contemporâneo — seja na Palestina, com o massacre regular de civis, seja na China, com os Uigures em campos de “reeducação” — ocorre sob o olhar passivo das democracias liberais, que priorizam fluxos comerciais, acesso a recursos e estabilidade económica sobre a proteção da vida. Este colapso moral do Ocidente é o verdadeiro sintoma de uma pré-guerra global: quando o valor da vida já não estrutura as decisões coletivas, a violência torna-se tecnicamente admissível, e a guerra é apenas uma extensão da política.

A União Europeia, ao abdicar da sua promessa fundadora normaliza práticas de exclusão e morte nas suas fronteiras externas. A retórica de valores já não sustenta a realidade — é apenas uma suposição diplomática educada. A dignidade da vida é sistematicamente negociada e silenciada.

9. A Dignidade da Vida VS. A Banalidade do Mal

A banalidade do mal, tal como identificada por Arendt, não depende do ódio, mas de abdicar do pensamento e da delegação cega da responsabilidade. Hoje, esta banalidade assume uma nova forma: não se traduz em campos de extermínio visíveis, mas em administrações neutras da morte, na recodificação da violência como segurança, e na transformação da vida humana em variável de gestão. É neste sentido que falamos de um novo colapso: não apenas político ou económico, mas simbólico e moral.

O que observamos nas sociedades ocidentais contemporâneas não é apenas a preparação técnica para o conflito, mas a criação subjetiva das condições que o tornam admissível: a linguagem que neutraliza, a neurobiologia que rejeita, o poder que disciplina sem explicar, a autoridade que se impõe sem vínculo, o silêncio dos estados perante o genocídio. Estes elementos, quando convergem, constroem um regime mental e institucional que já não reconhece o outro como igual, nem a sua existência como inegociável.

A dignidade da vida humana foi durante décadas uma ficção útil — sustentava a coesão interna das democracias e permitia que o Ocidente se visse a si mesmo como moralmente distinto das suas margens. Hoje, essa ficção perdeu eficácia. A vida foi rebaixada a meio. A pessoa já não é fim, cada vez mais duvido se alguma vez na história do ocidente o foi. O sujeito é julgado pela utilidade, pela eficiência, pela compatibilidade com o modelo de produção, e a morte — quando ocorre em certas geografias ou corpos — já não escandaliza. Torna-se estatística.

A única linha de defesa que resta é a reconfiguração da autoridade moral a partir do vínculo humano real. Não basta rejeitar o autoritarismo — é preciso reinventar a autoridade. Como nos ensina Freire, a autoridade verdadeira não se exerce sobre, mas com. Reconhece o outro, não como exceção, mas como origem legítima de sentido. Combater a banalidade do mal no século XXI exige, por isso, práticas educativas, políticas e simbólicas que reinstalem o outro como sujeito irredutível. Isso não se faz com palavras de ordem — faz-se com compromisso ao observar a  realidade concreta, com presença responsável.

O que está em causa já não é apenas a justiça social, mas a sobrevivência do humano como categoria moral. Se a vida continuar a ser instrumentalizada, a terceira guerra não será uma hipótese — será o colapso do valor humano.

A única resposta possível é aquela que restitui à vida a sua condição de fim absoluto.

Tudo o que não for isso será apenas uma política gestão da morte.

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