Chikki 101 – Sobre Pensar

Notas sobre inteligibilidade na minha prática


Preciso de clarificar, algumas posições  que já manifestei na minha prática artística e discursiva. Ao longo da entrevista concedida à Chama Rubra, referi que o meu trabalho não deve ser interpretado, mas inteligido. Esta afirmação compreendo que parece, à primeira vista, contraditória com o facto de manter uma secção intitulada "Chikki 101", onde partilho reflexões sobre a prática . O presente texto propõe-se, portanto, a pensar essa aparente contradição e a situá-la dentro de uma distinção fundamental: a que existe entre explicar e pensar.

  1. INTELIGIR ≠ INTERPRETAR
    A oposição entre inteligir e interpretar, tal como aqui a proponho, não rejeita o pensamento, mas sim a sua redução a discursos que se sobrepõem à experiência sensível. Apoio-me na crítica formulada por Susan Sontag em Contra a Interpretação, onde a autora acusa a actividade crítica de sufocar a obra. O problema está na mediação que neutraliza a presença — a tentativa de transformar a experiência estética num enunciado teórico fechado.

Neste contexto, inteligir não significa abandonar o pensamento, mas aceder a ele através de uma operação de contacto directo com o objecto. A etimologia ajuda: "interpretar" (interprĕtor) implica tradução e mediação; "inteligir" (intelligere), compreender desde dentro. Assim, quando afirmo que o meu trabalho não precisa de "revisão de literatura", não estou a recusar o pensamento crítico, mas a sublinhar que a experiência estética, em si mesma, é já uma forma de pensamento incorporado.

  1. CONTINUAÇÃO VS. EXPLICAÇÃO
    A análise que faço, por exemplo, do Puffi Game, não é uma interpretação no sentido clássico. Não aplico uma grelha conceptual exterior ao objecto, nem procuro fixar sentidos. Trata-se de um desdobramento da própria prática — um prolongamento, e não uma explicação. Esta distinção aproxima-se de Merleau-Ponty quando descreve a obra como algo que "fala por si", sem necessidade de ser traduzida em discurso teórico. Pensar a partir da obra, em vez de pensar sobre ela, é o que aqui proponho.

  2. PENSAMENTO COMO PROCESSO
    A estrutura que proponho para pensar o acto de pensar — dividida entre bios, logos e ethos — resulta de um trabalho desenvolvido no contexto da Filosofia da Educação, durante o Mestrado em Ensino de Artes Visuais. Esta proposta não pretende ser um modelo normativo, mas uma tentativa de articulação entre pensamento, sensibilidade e acção.

1–4. Sentir (patamar sensorial): o estímulo é captado pelos sentidos, processado e fixado como imagem.
5–6. Perceber (patamar conceptual): a abstracção e o juízo organizam a experiência.
7–9. Querer (patamar volitivo): o pensamento realiza-se na acção, quando a consciência se traduz em gesto.

Esta concepção reconhece, com Dewey, que a experiência estética é uma forma de experiência completa — onde sensação, cognição e acção se interpenetram. O pensamento que me interessa não se esgota na formulação de ideias: manifesta-se na forma como essas ideias são vividas, partilhadas e materializadas.

  1. ESSENCIALISMO HÍBRIDO
    A minha posição estética pode ser descrita como um essencialismo relacional: reconheço a presença sensível da obra como ponto de partida para qualquer processo de inteligibilidade. Não recuso o contexto, mas não o coloco em primeiro lugar. A potência da obra está na sua presença: na forma, na textura, na acção que provoca. O encontro com o objecto precede qualquer codificação discursiva. Esta posição mantém-se em diálogo com autores como Dufrenne e Agamben, que valorizam a experiência directa da obra enquanto acontecimento sensível.


Pensar não é apenas interpretar: é agir. O que defendo neste texto não é uma rejeição do pensamento, mas uma crítica a formas de pensamento que se afastam da acção. O pensamento como processo articula corpo, sensibilidade e acção. É nessa articulação que a sustento a minha prática — e é a partir dela que proponho estas reflexões.

REFERÊNCIAS

  • Sontag, Susan (1964). Contra a Interpretação.

  • Merleau-Ponty, Maurice (1961). O Olho e o Espírito.

  • Agamben, Giorgio (2008). A Obra de Arte na Era da Estética.

  • Rancière, Jacques (2000). O Partilhamento do Sensível.

  • Dewey, John (1934). Art as Experience.

  • Dufrenne, Mikel (1953). The Phenomenology of Aesthetic Experience.

  • Gadamer, Hans-Georg (1960). Verdade e Método.

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